06 – RELATANDO A VIAGEM PITORESCA AO RIO-LAGO TAPAJÓS

Ano 06 (2019) – Número 01 Artigos

 10.31419/ISSN.2594-942X.v62019i1a6MLC

 

RELATANDO A VIAGEM PITORESCA AO RIO-LAGO TAPAJÓS

No caminho de Henry Walter Bates a 167 anos e do Sonho de Henry Ford a 89 anos atrás

 

REPORTING THE PICTURESQUE TRIP TO THE RIVER-LAKE TAPAJOS

On the way of Henry Walter Bates 167 years and Henry Ford’s Dream 89 years ago

 

Marcondes Lima da Costa,

Instituto de Geociências/Universidade Federal do Pará, marcondeslc@gmail.com

 

ABSTRACT

The picturesque voyage to the river-lake Tapajos was carried out from 14 to 20.10.2018 in the Santarém – Fordlândia – Santarém section, with 10 participants and three crew members of the Genesis II boat, a two-decker boat with a capacity of 15 passengers. The trip followed the previous plan, which had as main objectives to visit Alter do Chão and the geological exposures representative of the geological formation Alter do Chão, the the amazonic clayey cover called Belterra Clay; Henry Ford’s huge projects in the Amazon (Forldândia and Belterra), aiming the production of latex and rubber to serve his automobile industry; visit part of the sites described in detail by Henry Walter Bates, such as Aveiro, Boim and Urucurituba; and the TPA sites in the ICMBio of Tapajos. All were visited, explored and documented. Fantastic beaches were explored, mountain ranges were climbed, bauxites found and beautiful outcrops of the formation Alter do Chão, Belterra Clay, conglomerates and blocks of gypsum in beautiful formations wondered. Historical sites like Urucurituba have left us deep impressions on our brothers of the recent past. The meeting of the Tapajos-Amazon river waters and the port of Santarém impressed us for their greatness. It was worth knowing the Bates way and Henry Ford’s daring.

Keywords: Alter do Chão, Bauxite, Cauixi, Belterra, Flona Tapajós, ICMbio, Aveiro, Fordlândia, Boim.

 

RESUMO

A viagem pitoresca ao rio-lago Tapajós foi realizada no período de 14 a 20.10.2018 no trecho Santarém-Fordlândia-Santarém, com 10 participantes e três tripulantes do barco Gênesis II, uma embarcação de dois decks e capacidade para 15 passageiros. A viagem seguiu piamente o plano tracejado, que tinha como objetivos maiores visitar Alter do Chão e as exposições geológicas representativas da formação geológica Alter do Chão, a cobertura argilosa Argila de Belterra se estende por grande extensão na Amazônia, os projetos magnânimos de Henry Ford na Amazônia (Forldândia e Belterra), visando a produção de látex e borracha para atender a sua indústria automobilística; visitar parte dos sítios descritos em detalhe por Henry Walter Bates, como Aveiro, Boim e Urucurituba; e ainda a visita de sítios tipo TPA/TPI na ICMBio do Tapajós. Todos foram visitados, explorados e documentados. Fantásticas praias foram exploradas, serras foram escaladas, bauxitas encontradas e belos afloramentos da formação Alter do Chão, da Argila de Belterra, de conglomerados e blocos de gipso em formações belas. Sítios históricos como Urucurituba deixaram-nos fortes impressões sobre nossos irmãos do passado recente. O encontro das águas e o porto de Santarém nos impressionaram por sua grandeza. Valeu conhecer o caminho de Bates e a ousadia de Henry Ford.

Palavras-chave: Alter do Chão, Bauxita, Cauixi, Belterra, ICMbio, Aveiro, Fordlândia, Boim.

 

ANUNCIANDO A VIAGEM PITORESCA

Com antecedência a viagem Pitoresca ao Rio-Lago Tapajós foi divulgada através do envio de e-mails a inúmeras pessoas com potencial interesses em participar da mesma bem como através do Boletim BOMGEAM, além das reuniões do GMGA às quartas-feiras e também nas reuniões do colegiado do Programa de Pós-Graduação em Geologia e Geoquímica (PPGG) do Instituto de Geociências da UFPA, com o seguinte teor: “O Grupo de Mineralogia e Geoquímica (GMGA) está organizando uma viagem com enfoque histórico, mineralógico, geológico e geoturístico ao rio-lago Tapajós, ou melhor para visitar o longo e elaborado caminho de pesquisa de vários naturalistas que deixaram obras monumentais, entre eles Henry Walter Bates (Bates, 1863), através de seu livro como leitura de bordo (Fig.1). Merecem igualmente destaque outros naturalistas como Herbert Smith, Friedrich Katzer, Robert Avé Lallemant, Domingos Soares Ferreira Penna, Johann Baptist von Spix, Carl Friedrich Philipp von Martius, Jean Louis Rodolphe Agassiz. Visitaremos as sedes abandonadas do grande empreendimento de Henry Ford, Fordlândia (Grandin, 2010) e Belterra, bem como a região de definição da grande unidade geológica Formação Alter do Chão (Soares et al., 2016) e da Argila de Belterra de Wim Sombroek. Também estão nos objetivos as áreas com terra preta (recomenda-se a leitura de Sombroek, 1966; Neves et al., 2003) em terra firme de suas margens, a exemplo da ICM-Bio Floresta Nacional do Tapajós e a sedimentação no Rio-Lago Tapajós e também sobre a paisagem atual e da época em que o homem pré-histórico começava a chegar ao vale Amazônico (Sugere-se a leitura de Costa et al., 2009). Um dos primeiros viajantes a reconhecer o baixo curso do Tapajós como mais um lago do que um rio foi Herbert Smith (1879). Os resultados e impressões colhidos durante esta viagem pitoresca serão publicados no Boletim BOMGEAM”.

 

Figura 1 – À esquerda cópia da capa do livro original de Henry Walter Bates e à direita uma cópia do retrato do próprio Bates. Fonte:
https://eu.wikipedia.org/org/wiki/Henry_Walter_Bates.

 

PERÍODO  DA VIAGEM PITORESCA: 13 a 20.10.2018

TRANSPORTADORES: GOL Linhas Aéreas (voos comerciais) e barco motorizado Gênesis II de propriedade do Sr. Ray fretado pela equipe e automóveis do prof. Bruno e do Sr. Ray.

PARTICIPANTES: Participaram 13 pessoas a bordo, 10 como passageiros e 3 como tripulantes (Tabela 1).

 

Tabela 1 – Relação dos participantes na viagem Pitoresca ao rio-lago Tapajós a partir de Santarém.

Nome do participante
1. Prof. Dr. Marcondes Lima da Costa (Organizador, Docente UFPA)
2. Profa. Dr. Rosemery da Silva Nascimento (Docente UFPA)
3. Prof. Dr. Moacir Macambira (Docente UFPA)
4. Prof. Dr. Bruno Apolo Miranda Figueira (Docente UFOPA). Apoio em Santarém.
5. Anderson Martins de Souza Braz (Doutorando PPGG/UFPA). Apoio.
6. Rayara do Socorro Souza da Silva (Mestranda PPGG/UFPA)
7. Priscila Valéria Tavares Gozzi (Mestranda PPGG/UFPA)
8. Ubirajara Fernandes Kimmemgs (Aposentado)
9. Milson Edmar da Silva Xavier (Aposentado SEFA)
10. Edna Cabral (Técnica IEC)
11. Ray (Proprietário do barco Genesis II e comandante)
12. Darlisson Sarmento Nogueira, Auxiliar I (filho do Sr. Ray, apoio no comando)
13. Reinaldo, Auxiliar II (apoio de máquina)

 

ROTEIROS DIA-A-DIA

Dia 13.10.2018:

Chegada dos participantes (9 pessoas) a Santarém no voo GOL 1805, 21:35-22:55, pontualmente. Translado realizado pelo professor Bruno em sua pick up e pelo Sr. Ray diretamente para o barco Gênesis II no porto da cidade de Santarém. Pernoite já no próprio barco, como forma de ambientação e por praticidade para a partida no dia seguinte.

 

Dia 14.10.2018:

Partida de Santarém e subida do rio-lago Tapajós. Início de fato da viagem pitoresca. Café da manhã a bordo já navegando, inicialmente com apreciação da estrutura portuária, dos barcos e navios e vista magnífica da cidade, que gradualmente ia sumindo na imensidão das águas do Tapajós. Linhas brancas no infinito delineavam as praias e falésias (penhascos segundo Bates). Surgem as rochas da Formação Alter do Chão descrevendo o relevo dos penhascos e do planalto, talvez encimados pela esperada Argila de Belterra.

Parada às 10:08 h na margem direita em praia (barra) arenosa riquíssima em seixos diversos e fragmentos cerâmicos: uma área deslumbrante (coordenadas: 2,43902 S, 54,89939 W) (Figura 2).

 

Figura 2 – Extensa e límpida barra de areia (praia) no rio-lago, localmente com linhas de seixos de minerais, fragmentos de cerâmica pré-histórica e moderna, além de inúmeros bivalves recentes.

 

À distância, a bordo do barco Gênesis II, admiramos a bela exposição de rochas da formação Alter do Chão na margem direita do Tapajós. Não foi possível aportar devido à condição rochosa do substrato do rio neste trecho. O comandante não concordou em encostar devido ao perigo eminente de acidente. Rio acima foram se sucedendo pela margem direita morros testemunhos da Formação Alter do Chão que se sobressaíam na paisagem de planície-planalto, correspondente à superfície de 150 a 160 m de altitude, de domínio da Argila de Belterra ou Belterra Clay (Figuras 3 e 4).

 

Figura 3 – Fantásticos penhascos desenvolvidos sobre arenitos e siltitos brancos a avermelhados da formação Alter do Chão. Coordenadas: 2,44989 S, 54,9425 W; às 10:57 h.

 

Figura 4 – Penhascos bordejados por praias branquinhas, tendo ao fundo um morro testemunho, no caso específico a Serra Piroca próxima a vila de Alter do Chão. Imagem capturada às 11:00 h.

 

Nova barra em pontal se desponta na margem direita do Tapajós às 12:23 h. Uma linda praia com areia grossa. No penhasco rochas da formação Alter do Chão, com muitos blocos métricos no seu sopé. Aqui apreciamos o banho delicioso em águas calmas, calientes e límpidas (Figuras 5 e 6).

 

Figura 5 – Uma segunda bela barra em pontal, sinuosa, de areias deslumbrantes, um convite para o banho.

 

Figura 6 – A equipe da Pitoresca em estado de felicidade extasiante na bela barra. Imagem tomada às 12:38 h no mesmo local da anterior.

 

E claro, resolvemos escalar a Serra Piroca (não confundir com serra do Pirocaua no estado do Maranhão) para desvendar o que a mesma tem de tão apelativa, especialmente no que concerne a geologia. O surpreendente é que ambas são formações lateríticas. Iniciamos às 14:56 h sob sol escaldante. Aqui iríamos conhecer as limitações e competências da equipe Pitoresca. Artistas: Edna e Anderson (Figura 7).

 

Figura 7 – Placa assentada na entrada da trilha para a escalada da Serra Piroca. Edna e Anderson dão o tom da aventura.

 

Já na meia encosta da subida da Serra Piroca se tinha uma vista fantástica da vila de Alter do Chão e de toda a paisagem de planalto e vales largos em U, demonstrando os processos de denudação ocorridos no passado, pois que agora esses relevos estão cobertos por floresta tipo savana e em parte floresta tropical densa (Figura 8). O topo da Serra Piroca está a 160 m de altitude tão somente, e foi esculpida sobre perfil laterito-bauxítico. Sua crista mesma é sustentada por relictos de bauxita nodular deferruginizada. Notar os platôs do entorno e a área arrasada em que se instalou a vila, bem como barras de areias vegetadas ou não (Figura 8). A vegetação varia de campos arbustivos em solo do tipo Neossolo quartzoarênico a Argissolo.

 

Figura 8 – Vista da vila de Alter do Chão e do relevo no seu entorno, bem como de parte do rio-lago Tapajós, com suas enseadas formadas por barras de areia em pontal, criando como piscinas de águas límpidas azuis, convidativas para o banho refrescante. Imagem capturada enquanto subíamos a Serra Piroca. Observe o domínio de floresta arbustiva. Imagem capturada às 15:51 h

 

Aportamos à vila de Alter do Chão às 17:58 h (Figura 9), uma pena que próximo ao anoitecer e assim não tivemos muito tempo para apreciá-la. Local turístico, mas pouco cuidado. A paisagem natural é deslumbrante, tendo o rio-lago Tapajós como principal ator, suas enseadas formatadas por barras e bancos de areia, suas águas límpidas, esverdeadas e ao fundo morros, platôs e mesetas e a vegetação de campo arbustivo (savanas) e floresta densa competindo entre si.

 

Figura 9 – O centro fervilhante da vila Alter do Chão, como lojinhas, bares e restaurante e gente pelas calçadas e bancos da praça.

 

No centro da vila Alter do Chão, ao final da tarde, apreciamos e compramos estoque de periguetes. Pernoitamos à margem esquerda do rio Tapajós nas redondezas de Alter do Chão em abrigo seguro. Era uma belíssima praia paradisíaca naquela noite de 14.10.2018. Como de costume, alguns tomaram banho, caminharam pela praia, depois jantamos a bordo e então fizemos nossa primeira reunião de avaliação do dia intenso, em que a Serra Piroca foi o centro de tudo, além das comprinhas, comidinhas (enormes pasteis) e bebidinhas na vila dita paradisíaca. Foi comprada até uma cachaça muito especial “meio caramelada” vestida em bela garrafa de vidro para se contrapor a cachaça  Abaetetuba gold. A programação para o dia 15.10.2018 foi escrita em cartolina e afixada na parede da íngreme escada (figura 10) que unia o deck (deck inferior) da plebe com o da elite (deck superior), que ia ser motivo de “discórdias” por toda a viagem. No deck da plebe ficava o anunciante da alvorada diária, inesquecível, de voz estrondosa e sonorizante, que dormia sob sons barulhentos de seus roncos alucinantes e desarmoniosos.

 

Dia 15.10.2018:

Figura 10 – Programação para o dia 15.10.2018 escrita em cartolina e afixada ao lado da escada.

 

Ao raiar do sol, às 6:05 h, algumas arraias singravam elegantemente o chão das águas que banhavam a nossa linda praia. Um mundo isolado, sem ninguém, a não ser o pessoal do Gênesis II. O temor levou a confundir um pedaço de pau estendido na praia com um jacaretinga, que grassavam de fato pela redondeza. Aos poucos a turma foi acordando para apreciar a linda paisagem descrita por águas infinitas, praia aconchegante e um sol nascente belíssimo (Figuras 11 a 14).

 

Figura 11 – O sol nascente laureando a nossa praia no amanhecer do dia 15.10.2018, mas já eram 6:05 h. Coordenadas do lugar: 2,47076 S; 54,98391 W.

 

Figura 12 – O Gênesis II no momento da alvorada às 6:10 h ancorado na referida praia. As redes ainda estavam a postos e seus passageiros tirando remela dos olhos. Anderson cumprimenta com o seu vozeirão os primeiros a se levantarem a postos na proa do barco.

 

Figura 13 – O banho matinal na referida praia às 6:31 h, minutos antes do café a bordo, para energizar o corpo e a alma, pois pela frente teríamos mais um longo e belo dia.

 

Figura 14 – Grandes balsas (comboio de balsas) empurradas por minúsculos e “musculosos” (se confrontados com o comboio) empurradores singrando o Tapajós abarrotadas de grãos vindos de Mato Grosso. Às 6:40 h. Vide a imensidão da largura do Tapajós, a margem esquerda está no horizonte da imagem, são quase 20 km de largura.

 

O lauto café da manhã de 15.10.2018 foi degustado prazerosamente a bordo do Gênesis II singrando as límpidas águas do Tapajós (Figura 15). Eram 7:16 h.

 

Figura 15 – O café da manhã servido no deck da plebe enquanto o Gênesis II navegava para sul.

 

Às 8:08 h já avançávamos sobre o marzão Tapajós vendo-se ao fundo num mundo distante a sua margem esquerda delineada por uma tênue linha branca indicativa de praia e penhascos. Eram 08:08 h da matina. Nosso destino era a Floresta Nacional do Tapajós/ICMBio ou Flona Tapajós. Na rota muitas paisagens deslumbrantes, um céu azul, uma mata infindável verde e muita água em tom azul esverdeado, tudo em escala gigantesca. Água azul e céu cinza azulado se uniam no horizonte (Figura 16). Alguns pitorescos no entanto não lograram sono reparador (Figura 17).

 

Figura 16 – A imensidão das águas azuis do Tapajós se une com o céu cinza azulado no horizonte distante.

 

Figura 17 – Para alguns parece que a noite não foi reparadora. Procuravam no barco um local exótico para recuperar o sono perdido. São 8:11 h da manhã.

 

Bela paisagem de planalto ladeando o Tapajós por sua margem direita, esculpido sobre as rochas sedimentares da formação Alter do Chão encimadas pela Argila Belterra (Figura 18) e no rio-lago Tapajós desabrochavam belas barras arenosas (Figura 19). Aproximávamos do porto do ICMBIOs/IBAMA (Flona Tapajós), nosso próximo destino.

 

Figura 18 – Planaltos e morros arredondados esculpidos sobre a formação Alter do Chão e ao fundo distante bela barra de areia branca, paradisíaca, junto a enseada do porto/vila Guarani da ICMBio. Eram 9:36 h.

 

Figura 19 – Uma barra arenosa em forma de língua com concavidade suave, que parece invadir as águas azuis do Tapajós, na verdade surge dele. Ao fundo delineia-se barracas de pescadores e de apoio aos turistas.

 

Chegamos a região da Flona Tapajós ICMBio. Por falta de calado o nosso Gênesis II não pode mais seguir, fundeou-se e fomos transladados com auxílio da voadeira para o porto da reserva Floresta Nacional do Tapajós (Figura 20). Desembarcávamos às 9:49 h.

Aqui fizemos uma caminhada de 16 km dentro da reserva para conhecer um pouco da floresta e dos sítios ocupados pelo homem pré-histórico, do índio, da Terra Preta.

 

Figura 20 – O translado com a nossa voadeira de apoio.

 

Já no porto, um terreno silto-arenoso muito úmido, uma antiga praia, em processo de recobrimento por material silto-argiloso, em parte em processo de ocupação pela vegetação, mostra exsudação de águas marrons ricas em coloides óxi-hidróxidos de ferro, que mancham ou colorem a fina areia também de marrom a avermelhado. Esse fato é muito comum na Amazônia, especialmente onde as rochas são ricas em minerais de ferro, como sulfetos, mas também óxidos e hidróxidos, submetidos a condições redutoras. E tudo indica que esta zona portuária se encontra nesta condição, ou seja, esta porção do rio está mais para um ambiente lótico, lacustre, de águas parálicas. Também grassavam cauixis no piso do terreno e afixados aos arbustos que desabrochavam nesta zona. É quase uma peste. Como já mencionado, os cauixis retratam o elevado teor de sílica dissolvido na água, e  se constituem em mais um reforço na condição lacustre desta zona.

Junto ao porto da reserva encontra-se a vila Maguary (Figura 21 a 23), que é formada por algumas casas, a igrejinha, uma escola, posto de atendimento ao público e um tele centro. A estrada de chão, pavimentada com blocos de bauxita (elas deveriam estar por perto) e crostas laterito-bauxíticas ferruginosas, vermelhas, constitui a única rua, com muita poeira, que não é maior, por ter tráfego muito reduzido. Esta estrada dá acesso a Alter do Chão, Belterra e, por conseguinte a Santarém. Muitas seringueiras grassam na vila e parecem “cortadas” de forma muita precisa, uma isca aparentemente para os turistas, que em sendo estrangeiros, pagam taxas de visitas 10 vezes maiores que os brasileiros. Um procedimento que vimos como muito antipático, discriminatório. Mas fomos muito bem recebidos pelo Sr. Raimundo e seus familiares, que foi o nosso guia nos 16 quilômetros de caminhada.

 

Figura 21 – Vista da vila Maguary ao fundo, um baixo penhasco vegetado, portanto semi-fóssil e na base a praia, parcialmente coberta por silte-lamoso, também em processo de ocupação pela vegetação, em ambiente semi-lótico.

 

Figura 22 – À margem da estrada-rua da vila/comunidade Maguary vendo-se ao fundo o rio-lago Tapajós, em sua imponência, e as placas informativas.

 

Figura 23 – A escola E.M.E.F. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro na comunidade Maguary. Neste dia, fechada. Descobrimentos o motivo: era o dia do professor, o dia de vários participantes da viagem Pitoresca. O engraçado era que o dia não é festejado, é feriado. não é para festejar. Qual o sentido disto tudo?! Faz sentido? Deveria ser um dia cívico comemorado na escola. Os fragmentos de rocha no chão marrom avermelhado contém material bauxítico trazido de algum lugar para auxiliar na pavimentação.

 

A escola de Maguary em plena segunda-feira fechada. Era o dia do professor. Festejamos sem festejar o nosso dia nesta vila e ao longo da comprida caminhada. No chão fragmentos de bauxita fazem o calçamento. Não encontramos aqui afloramento de bauxita. Elas foram observadas na Serra Piroca em Alter do Chão.

Anderson se antecipou e foi tentar obter informações sobre restrições ou não para permanecer no local. Trouxe boas e ruins. Boas que podíamos circular e ruins porque teríamos que pagar. A nosso favor estava o fato de não sermos estrangeiros, e por conseguinte pagaríamos taxas mais módicas. Foram negociadas a R$ 100,00 para toda equipe (10 participantes da Pitoresca). Acordo fechado e nos dirigimos às instalações do guia e sua família. Pessoal simples, atencioso, de grande simpatia. Aqui fomos generosamente recebidos. À mesa situada em chão de barro batido e sob cobertura de palha, café, pão, margarina, refresco, tudo muito delicioso, regrado a muita conversa agradabilíssima. Nos deliciamos. A conversa foi ótima e acertamos qual a trilha a seguir, a que nos conduzíssemos a Terra Preta, grandes árvores, floresta, etc. Uma vida de simplicidade, aparentemente rica em bem servir dentro de suas poucas posses. Após inúmeras fotos pelos arredores das instalações, principalmente curiosando o banheiro, a privada (Figura 24), as plantas, o varal, partimos para a caminhada, que se mostraria longa, e para muitos, cansativa, mas prazerosa. Chamava a atenção o bosque de seringueira, com cortes simétricos, perfeitos, embora profundo, o que dava uma ideia, de que foram feitos para impressionar visitante não familiarizado com a atividade de cortar seringa, a colheita de látex.

 

Figura 24 – À esquerda corte simétrico e quase perfeito da seringueira; à direita aposentos e instalações na residência do Sr. Raimundo em vila Maguary.

 

Às 10:50 h iniciamos a longa caminhada sempre subindo, subindo, inicialmente de forma suave e já ao seu final de forma abrupta. Um corrimão ajudou aos mais desprevenidos nesta jornada. A trilha não é mais uma trilha, é uma estrada para se andar com conforto, bem sombreada, agradabilíssima. Tem até pontos de descanso. No topo atingimos apenas 160 m. Não é alto não, é que a gente estava despreparada.

Nos terrenos baixos dominavam Neossolos quartzoarênicos (Figura 25), vegetação ocupada por palmeiras, muitas delas espinhosas. A ausência de animais silvestres chamou bastante atenção, tanto aqueles que vivem no chão, terrestre, como das árvores, arborícolas. A exceção se fez às formigas, principalmente as cortadeiras, que estavam por todos os cantos. Mas a medida que subíamos surgiam Argissolos amarelos, aparentemente derivados de zona saprolítica da Formação Alter do Chão, com vegetação se tornando densa, com muitas árvores de grande porte, enquanto as palmeiras diminuíam em densidade e a liteira ficava mais rica. Surgiram então piquiás, jequitibás, castanheiras com relativa frequência, com frutos, sumaúmas, etc. Ao topo, o terreno se torna quase plano, é o planalto, e a floresta é bela, frondosa, limpa. Desconfio que estamos sobre a Argila de Belterra, que em geral recobre bauxita. Blocos de bauxitas encontramos na vila Maguary, base do planalto, como material de pavimentação. A luminosidade é alegre, e as árvores filtram os raios solares, dando origem a jogos agradáveis de luz. Uma poesia sem palavras, sem versos (Figura 26). Localmente se encontram indícios de ocupação humana, representada por sítios de Terra Preta, de Terra Mulata com fragmentos cerâmicos; também roçados recém-abandonados, portanto de povos atuais. A subida do planalto deixou algumas baixas, e a parada foi necessária para recuperar as energias (Figura 27), e ao mesmo tempo apreciar a habilidade do nosso guia na confecção de artefatos práticos, do dia-a-dia, como cestos, abanadores, a partir das palhas das palmeiras.

 

Figura 25 – Edificações de formigas cortadeiras (formigas de roça) em solos tipo Neossolos quartzoarênicos.

 

Figura 26 – A trilha na floresta, uma trilha romântica, poética. Parece uma pintura de naturalista dos tempos idos, de Henry Walter Bates, por exemplo.

 

Figura 27 – Descanso providencial ao chegarmos ao topo do platô ou planalto. Ainda tínhamos muito chão pela frente, porém sobre o planalto, sem sobe e desce. Nesta subida uma jovem perdeu os seus lindos óculos negros. Manteve-se tristonha, mas Anderson o achou no retorno, e claro, festou o achado em alto vozeirão.

 

Da espessa liteira brotam formações tubulares perfeita erigidas por aranhas a partir da argila do Argissolo subjacente (Figura 28). Eram 12:48 h. Esse Argissolo tem muita similaridade com a Argila de Belterra.

 

Figura 28 – À esquerda construções tubulares, verticais, perfeitas, que surgem da liteira, elaboradas a partir dos Argissolos subjacentes, por hábeis aranhas engenheiras. À direita a equipe postada ao lado do tronco e sapopemas de uma sumaúma gigante e ao chão espessa liteira.

 

Eis que surge um providencial tapiri (Figura 29) semiabandonado de povos da floresta sobre o platô, ocupado momentaneamente por povos da cidade “moderna”. Ele está assentado sobre área dominada por TPA ou TPI (Terra Preta de Índio). Plantações atuais estão ao lado do mesmo. Fragmentos cerâmicos de TPA e/ou TPI estão espalhados pelo solo, e em parte foram amontoados e descartados pela população dos roçados recentes (Figura 30). Marimbondos se postavam traiçoeiramente nas árvores frutíferas postadas ao longo do caminho, e ferraram sem maldade alguns dos transeuntes pitorescos.

 

Figura 29 – Um tapiri amazônico, bem elaborado. Nele se encontrou mesas rústicas e alguns utensílios simples de cozinha e para o roçado, em sinal de abandono. Mas nos foi muito oportuno, nos protegendo temporariamente do forte sol do início da tarde.

 

Figura 30 – As três primeiras imagens da esquerda para direita ilustram os  pequenos fragmentos de cerâmica arqueológica (frente e verso) que foram analisados por FRX portátil, em geral portando teores de P2O5 compatíveis com utensílios domésticos do preparo de alimentos por cozimento, certamente. À esquerda abaixo o solo TPA próximo ao roçado e do tapiri.

 

Iniciamos então a caminhada de volta pela mesma pisada, a trilha. Pessoalmente fui me deliciando com a beleza da mata, o seu silêncio e o seu desconhecido a nos espreitar. A equipe foi chegado aos poucos à comunidade. Às 16 h já estavam todos. Ainda teve um conversê, com compra de dois litros de açaí um pouco suspeito; estava ralo, fraquinho. Voltamos ao porto e nossa voadeira iniciava o nosso transbordo em duas viagens para o Gênesis II que nos aguardava ao largo. Viajaríamos ainda pouco mais dentro da noite, ao encontro de um abrigo para ancorarmos e então pernoitar. Pernoitamos na praia à margem direita do Tapajós, a caminho de Aveiro, que estava bem próximo. Ainda nos reunimos para discutir as atividades do dia cheio e ainda preparar a programação para o próximo dia (Figura 31).

 

Dia 16.10.2018:

Figura 31 – Programação para o dia 16.10.2018.

 

A praia do pernoite era muito aconchegante. Acordamos cedo, neste belo dia de 16.10.2018. A praia era longa, com penhascos muito alto, esculpidos na formação Alter do Chão. Blocos de arenitos com estratificação cruzada se esparramavam na praia (Figuras 32, 33 e 34). Mais ao norte afloramento contínuo de siltitos a arenitos finos vermelhos a lilases afloravam nos penhascos e se estendiam em toda sua altura. As imagens retratam a manhã preguiçosa do dia 16 na margem direita do rio-lago Tapajós, às proximidades da cidade de Aveiro, além dos belos afloramentos Alter do Chão.

 

Figura 32 – A praia do abrigo do pernoite de 15.10 a 16.10.2018. Os blocos escuros são de arenitos ferruginizados com estratificação cruzada. As linhas sinuosas e paralelas formados por blocos de rochas e detritos vegetais e até bivalves retratam as oscilações do nível d’água e as forças das ondas.

 

Figura 33 – Detalhe de blocos métricos de arenitos parcialmente ferruginizados com estratificação cruzada. Ao fundo siltitos esbranquiçados da formação Alter do Chão. Os arbustos da praia por vezes continham incrustações de cauixi. A presença de arbustos de porte métrico sugere que conseguem sobreviver às enchentes do rio-lago, e essas águas não permanecem por muito tempo e nem recobrem a sua copa. A presença de cauixi por sua vez reafirma a condição de águas quase parálicas.

 

Figura 34 – Exposição de siltitos e arenitos finos a argilosos no alto penhasco de nossa praia. Na base tendem a ser avermelhados até roxos, enquanto para o topo esbranquiçados, parcialmente caulínicos. O solo orgânico instalou-se diretamente sobre a zona caulínica. Tudo indica que os tons vermelhos a lilases são primários, enquanto os caulínicos representariam a alteração saprolítica. As bauxitas estariam nas porções mais altas, não observadas aqui.

 

Nesta praia encontram-se expostos arenitos e siltitos vermelhos laminados na base (figura 35) e siltitos brancos pálidos ao topo da Formação Alter do Chão. Ao nível de água baixa observa-se grande quantidade de afiadores e amoladores. Seixos de quartzo e fragmentos cerâmicos e de siltitos (Figura 36) são encontrados de vez em quando, em parte retrabalhados pelas águas ondulantes do rio-lago, mas certamente refletindo a intensa ocupação humana pré-histórica nessa região. É um belo sítio arqueológico. Os fácies arenosos foram usados como afiadores e amoladores.

 

Figura 35 – Bela exposição dos siltitos/argilitos laminados vermelhos a roxos da Formação Alter do Chão na mesma praia do pernoite. Um detalhe da imagem da figura 34. A embalagem (ela não foi abandonada no local) do sabonete unitário dá uma ideia de escala.

 

Figura 36 – Outra visão da praia do pernoite 15.10/16.10.2018 na manhã de 16.10.2018 às 6:47 h. Ao fundo o nosso “iate” Gênesis II fundeado com os passageiros saboreando o café da manhã. No primeiro plano observa-se a areia da praia com linhas de “seixos” imaturos de arenitos e argilitos derivados da Formação Alter do Chão, que afloram no penhasco ao lado.

 

Daqui zarpamos ainda cedo com destino a Aveiro, que aguçava a nossa imaginação, por conta das descrições feitas por Henry Walter Bates: Terra Preta, formigas de fogos, cidade fantasma. Tínhamos que conferir. Aproveitamos a longa viagem com bom tempo para continuar a leitura do nosso livro de bordo escrito por Bates, enquanto alguns aproveitaram no entanto para ficar no pano (figura 37).

 

Figura 37 – Singrando no rio-lago Tapajós. Momento precioso e tranquilo para se deliciar com a leitura de bordo, o livro de Bates, em bela e romântica concentração. Alguns preferiram descansar no pano. Eram 9:20 h.

 

Às 11:51 h a cidade estava à vista (figuras 38 e 39). O relevo de planalto com alguns morros reliquiares desaparecera e então surge à margem direita, terrenos baixos, planos, como descrevera Bates em 1851. Eis que logo pudemos delinear a cidade ocupando os baixos barrancos ou penhascos do rio Tapajós. Aqui ele é realmente um rio, sua largura diminui para menos da metade, e suas águas apresentam ligeira correnteza. Enquanto o Gênesis II ancorava, o almoço foi servido (figura 40). Eram 11:59 h. Toda a tarde estava reservada para a vida em terra. Rever e comparar as nossas impressões com aquela descrita por Bates há 167 anos atrás. Ele encontrara naquela época cerca de 14 casas e uma praga de formigas de fogo. Fomos conferir. Com certeza o número de casas é muito maior, bem distinto do seu tempo.

 

Figura 38 -A cidade de Aveiro surge ao fundo, na margem direita do rio Tapajós.

 

Figura 39 – Vista do porto da cidade de Aveiro na margem direita do rio Tapajós, muito movimentado. É praticamente entrada e saída da cidade. O casarão branco é a sede da prefeitura. Surpresa geológica nos aguardava no barranco da cidade.

 

Figura 40 – O lauto almoço antes do desembarque em Aveiro foi servido e degustado, e como foi, quase devorado.

 

Às 12:40 h desembarcamos, sol escaldante, e o afloramento estava aos nossos pés em pleno porto. Conglomerados polimíticos belíssimos (Figura 41), pareciam concreto armado (depósitos aluvionares?). Seixos de quartzo de vários aspectos, hialinos, leitosos, calcedônicos em diversos tons, de rocha granulares, de arenitos (?), quartzitos (?) e localmente com cimento opalino a calcedônico branco leitoso. O sol escaldante não impedia o nosso alvoroço em colecionar tantos seixos diferentes. Muitos deles com formato triangulóide, alguns até com traços sugestivos de estrias relativas a geleiras. Simplesmente fantástico. Que unidade seria esta? Formação Alter do Chão, não era conclusivo. Unidade paleozoica da Bacia do Amazonas, talvez! Ou simplesmente paleo aluviões, pois que estávamos justamente na zona de passagem de rio para lago, na abertura do funil. Aqui realmente o Tapajós assume o formato de um funil, ou melhor de uma taça de champanhe sem a base. O porto é muito movimentado, pelo menos ao tempo de nossa chegada (figura 42).

 

Figura 41 – Barranco expondo lentes de conglomerados polimíticos em arenitos grosseiros com estratificação cruzada. Os buracos horizontais são locas de peixes por ocasião das águas grandes.

 

Figura 42 – Intenso movimento no porto. Uma balsa enorme chegara carregada com milhares e milhares de tijolos. Conclusão: Aveiro não produzia sequer tijolos, vinha de fora. À esquerda da imagem os conglomerados.

 

Após a degustação do belo afloramento subimos o barranco e sob a vista parcial de curiosos passamos andar pela orla da cidade. Logo estávamos diante do prédio da prefeitura municipal (Figura 43) e sentido as picadas das formigas de fogo (Figura 44). Começava a visita à cidade, o desbravamento daquela que fora a morada de longos meses de Henry Walter Bates há 167 anos atrás. E lá estavam as pragas descritas por Ele, as formigas de fogo. Elas ainda continuam por lá, porém bem menos do que antigamente, assim nos pareceu. Ou então as pessoas apreenderam a conviver com as mesmas. Mas o lixo a que ele se referia na época persiste, porém com o domínio agora de plásticos em diferentes formas de embalagens. Naquela época certamente dominavam os orgânicos.

Alguns modelos de residência (Figura 45) persistem, modificadas já nos anos 50, provavelmente, além da pequena igreja (Figura 45) O mais interessante é a Secretaria de Mineração (letras miudíssimas) e de Meio Ambiente (letras garrafais, por que? O que significa?) (Figura 45). E a terra preta arqueológica (TPA), quase azulada, referida por Herbert Smith, na praça na orla fluvial, também é magnífica (Figura 46). É espessa e contém fragmentos cerâmicos. Mesmo com as construções civis já realizadas ao longo da orla, é possível notar que as TPAs se estendem por toda quase sua extensão. O que demonstra que os povos pré-históricos ocuparam toda a orla, por motivos quase óbvios.

Caminhamos ainda pelas poucas ruas da cidade, que não conta com esgoto e nem drenagem de água, e o lixo está espalhado por todos os lados. Muitos prédios públicos se espalham pelas poucas ruas pavimentadas. No horário de nossa visita a cidade parecia dormitar e se dedicar a sesta. Já pelas 15 h o pequeno comércio reabriu, sonolento, devagar, mas Edna e Bira descobriram um “delicioso” dindim (chope). Na praça a beira-rio tem alguns monumentos de gosto duvidoso, danificados, com lixo. Uma pena, pois a paisagem que combina barrancos e a grandiosidade do rio e da floresta é linda.

 

Figura 43 – O time da viagem pitoresca, descontraído, em frente à Prefeitura de Aveiro.

 

Figura 44 – Ninho de formigas de fogo na rua principal em Aveiro, Pará. Uma praga que Bates encontrara na cidade, e que à época dele teria afugentada a sua população, dando um ar de abandono, na descrição dele.

 

Figura 45 – À esquerda casas simples de madeira, guardando traços antigos; ao lado a capelinha simples. À direita a sede da Secretaria de Mineração (quase ilegível) e de Meio Ambiente (legível a partir do meio do rio Tapajós, se não fossem as casas em frente).

 

 

Figura 46 – Típico solo TPA que cobre parte do terreno da orla fluvial da cidade de Aveiro, nos seus primeiros 20 cm, obtido com trado holandês providenciado pelo prof. Anderson. Alguns fragmentos de cerâmica são delineáveis neste 20 cm.

 

Às 16:30 h nos despedimos de Aveiro e navegamos por várias horas para chegarmos à Fordlândia, onde aportamos já tarde da noite. Mas antes disto fizemos uma parada numa bela praia na margem esquerda do rio (Figura 47) e conhecemos a família-casal (Estrela e Hidelbrando) muito atenciosa com uma manada de cachorros. Edna logo entabulou longa conversa com ela enquanto eu e Milson fomos desvendar a porquê da voçoroca que avançava sobre a escarpa da serra. Ela, Estrela, queixando-se um pouco de doença e ele também, porém, bem espertos. Logo depois, quando estávamos na meia encosta, eis que chega o sr. Hildebrando, que nos acompanhou na subida da serra, uma subida muito íngreme, coberta de braquiária e muitas cabeças de gado. Lá estava a grande preocupação: uma voçoroca que a cada ano crescia mais, e ameaça a residência, que está ao pé da serra (Figura 49). Tem perigo mesmo, e quase eminente. O desenvolvimento da voçoroca foi propiciado pela sua situação em relevo escarpado, antes florestado, desmatado para formação de pasto, e principalmente pela natureza do substrato, conglomerado com matriz ampla silto-argilosa e exsudação de água do lençol freático a partir de anfiteatro e run off pela escarpa. Os seixos de quartzo são os mais abundantes. A rocha intemperizada ao nível saprolítico facilita ainda mais a erosão linear (voçoroca).

Por outro lado, o rio no inverno (por ocasião das cheias) chega a porta da casa, que no verão deixa uma barra de areia (praia), que a protege e ao mesmo tempo a enobrece, é uma barra norte-sul; outras barras e depósitos lacustres já estão vegetados por jauari, uma palmeira com muito espinho, além de muitas outras árvores. Aqui o casal Estrela-Hidelbrando se fixou com toda a família, onde cada filho tem já a sua própria morada no sopé da serra. Ao final da tarde, enquanto partíamos o casal se dedicava a recolher os peixes da malhadeira.

 

Figura 47 – A linda e extensa praia próximo a fazenda do casal Estrela – Hidelbrando, na margem esquerda do rio-lago Tapajós. Ao fundo, no meio do rio, um comboio de balsa sendo empurrado para Santarém levando com certeza soja de Mato Grosso.

 

Figura 48 – Da escarpa da serra vendo a sede da fazenda do casal Estrela – Hidelbrando próxima a margem esquerda do rio.

 

Do alto da serra tínhamos uma vista deslumbrante da casa da fazenda na margem do rio e neste (Figura 48), dois grandes conjuntos de balsas carregadas de grãos produzidos em Mato Grosso (Figura 48) sendo empurrados lentamente ao porto de Santarém. Eram 17:26 h. O transbordo de caminhões para balsa é feito no porto de Miritituba em Altamira rio acima.

 

Figura 49 – A voçoroca instalada no vale coberto com braquiária e substrato tipo saprólito derivado de conglomerado de ampla matriz silto-argilosa.

 

As 17:30 h embarcamos e nos largamos para Fordlândia onde chegamos às 20 h. As luzes da vila despontavam incógnitas no horizonte da margem direita do Tapajós. Ancoramos perto do trapiche agigantado do tempo de Ford, mas não desembarcamos, deixamos para o dia seguinte. Jantamos ao longo do percurso, antes de chegarmos à Fordlândia. Dormimos cedo, após a reunião rotineira da noite para delinear a atividade na vila (Figura 50). Decidimos que teríamos o dia todo dedicado à Fordlândia, obviamente, dado a imponência do projeto e do seu histórico, merecia assim uma temporada mais longa. Embora um dia não fosse uma temporada longa, mas comparativa em relação às outras paradas.

 

Dia 17.10.2018:

Figura 50 – Programação prevista para o dia 17.10.2018 em Fordlândia.

 

O amanhecer em Fordlândia foi movimentado. Eram 5:50 h., mas o movimento do porto começara ainda às 4 h da matina. Era barco partindo e chegando e muita gente falante, quase uma algazarra ensurdecedora. Descargas de banheiro se repetiam a todo instante. E pra onde iam? Pro rio! E daí pros peixes, e dos peixes pra quem? Não pense mais, conclua e se resigne. Dormir nestas condições já não era tão simples. Foi melhor apreciar o movimento. Mesmo na penumbra do alvorecer, se descortinava a grandiosidade do vulto, o armazém/galpão do porto (Figura 51). Duas luminárias se comportavam como dois olhos gigantes a perscrutar os novos “forasteiros” da viagem pitoresca a bordo do Gênesis II.

Mesmo assim muitos embarcados no Gênesis II ainda dormiam (Figura 52) em suas redes coloridas tanto no deck da plebe, enquanto no da elite já apreciavam o movimento do amanhecer (Figura 53), ou admiravam as obras imponentes de Fordlândia ainda no porto. Eu fui um deles, que queria saborear e desfrutar cada minuto do dia em um destino tão sonhado e distante. Tenho enorme admiração por essas pessoas destemidas que abraçam atividades gigantescas. São eles que movem o mundo, sem eles, me parece, ficaria tudo igual, ou pior. Certamente não haveria evolução. Hoje “ciência” em nosso País pensa em manter o status quo.

 

Figura 51 – O velho e imponente galpão, armazém do porto, na penumbra do amanhecer, em que duas luminárias dos postes, pareciam dois olhos do armazém a nos perscrutar.

 

Figura 52 – Enquanto isto os pitorescos ainda sonhavam com um novo mundo em redes coloridas no deck da plebe.

 

Figura 53 – Na elite as redes eram aliviadas e os sonolentos admiravam e imaginavam como seria tudo aquilo há quase 89 anos atrás.

 

E assim cedinho alguns desembarcaram para fazer os primeiros reconhecimentos, contatos e comprar pão fresquinho para o café. A padaria era logo ali na frente, após a ponte. A nossa frente ainda no barco, às 6:11 h, se vislumbrava a norte o imponente e ainda moderno, grandioso e elegante galpão de ferro e vidro (Figura 54), muito maltratado pelo desprezo humano, por não entender a sua história ou mesmo por até repugná-la. Talvez por inveja, incompetência. Suas linhas arquitetônicas e o material empregado nos fazia voltar ao tempo e imaginar como toda essa obra se empunha neste vasto mundo de águas e florestas e céu deslumbrante, desligado de tudo e de todos, e procedente de terras longínquas. Logo a nossa direita, a sul, surgia da água do Tapajós o sistema de captação de água, já adernando, surrupiado em parte, como a se despedir deste mundo ingrato, assim transparecia (Figura 55). Mais distante despontava no horizonte próximo a bela e elegante caixa-d’água (Figura 55). Vista de longe, uma elegância, vista de perto uma obra monumental, que funciona e atende a vida da vila até hoje, mais moderna do que a da cidade-sede do município, Aveiro. Vale conferir.

 

Figura 54 – Vista do cais/trapiche em madeira e ao fundo o belo galpão, se sentindo abandonado, subutilizado, mas ainda resistindo com sua imponência. São 6:11 h.

 

Figura 55 – Barcos ancorados ao lado direito do Gênesis II. Ao fundo no leito do rio o sistema de captação de água, adernado e dilapidado; mais ao fundo em terra surge distante a caixa-d´água e o prédio-casa gerencial. São 6:10 h. A lancha amarela é para o transporte escolar.

 

O porto no amanhecer já com chegada de balsa autopropulsionada e carregada de carros, de trator, mantimentos diversos e muita gente. São 7:22 h. Ao fundo, ilhas e a margem esquerda do rio Tapajós, onde está a localidade Uricuriquara, que visitaremos no dia seguinte, 18.10.2018.

 

Figura 56 – A chegada de uma balsa auto motorizada com passageiros, muita carga, incluindo um trator. Utiliza o trapiche do antigo projeto Ford.

 

E claro, a igreja católica, construída posteriormente, e finalmente uma obra de gosto duvidoso, de 2007, a praça, que destoa de todo o conjunto (Figura 57). A sua esquerda, fora do campo da imagem, algumas seringueiras jovens, não mais que duas dezenas de árvores, que foram denominadas de “Bosque das Seringueiras Prof. Dr. Camillo Martins Viana”, ex-vice-reitor da UFPA, ambientalista estilo duro (Figura 58).

 

Figura 57 – A igreja católica na praça de gosto duvidoso com uma grande serpente (linha branca tortuosa ao centro da imagem).

 

Figura 58 – “Bosque das Seringueiras Prof. Dr. Camillo Martins Viana.

 

Nos dois gigantescos galpões de máquinas e equipamentos, bem como almoxarifado, ainda é possível observar em parte a ordem, a organização que imperava, tudo do bom e do melhor daqueles tempos. Máquinas robustas e enormes para diversos fins, ainda sobrevivem aos descasos, às intempéries e à delapidação. Também se pode ver restos de uma grandiosa caldeira à lenha (Figura 59) que produzia energia elétrica para toda vila. Eram duas, e claro também dois geradores. Os destroços de uma delas está no matagal junto ao porto atual.

 

Figura 59 – Uma das duas grandiosas caldeiras movidas à lenha no galpão de máquinas.

 

Figura 60 – Galpão de máquinas pesadas e peças, hoje um depósito decadente. As máquinas pesadas estão aparentemente em seu assento original e as outras foram jogadas ali para enferrujarem. Mas são tão boas, construídas em material tão resistente, que resistem em resistir. No sentido horário: à esquerda vista externa do galpão, provavelmente tinha outro nome bem mais nobre. Nas duas seguintes máquinas pesadas, restos de um veículo pesado, o nobre caixão para transporte de mortos e a ambulância.

 

Esse enorme galpão (Figura 60) com suas máquinas e respectivos destroços é hoje utilizado para preparação de solos para o cultivo de mudas de várias plantas regionais para distribuição voluntária à população, que parece alheia a iniciativa. Milhares de sementes de andiroba apodreceram sobre o espesso tablado duplo de madeira de lei, que acelerou o apodrecimento do mesmo. Também é usado para entulhar objetos da época e da atualidade. As mudas produzidas atualmente são belas, viçosas, alimentadas com terra preta arqueológica, porém sem aparente despertar de interesse pelos potenciais e duvidosos clientes. Mudas de açaí já morriam por stress no saquinho, pois já estavam grandinhas demais para sobreviverem neste microambiente de saquinho de plástico. Surpresa: o material empregado era tipicamente solo TPA rico em fragmentos cerâmicos (Figuras 61 e 62), coletado às proximidades (30 km de distância, segundo informações verbais), que muitas pesquisas já demonstraram a sua alta fertilidade, mas poucas a origem dessa fertilidade. O fantástico: os fragmentos de cerâmica eram catados e colocados à parte. Não sei o que faziam com eles, mas certamente eram descartados. Fomos muito bem recebidos pelo pessoal do viveiro, da administração ao cultivo, que nos ofereceram um saboroso café quente fortemente adocicado, ao gosto da freguesia.

 

Figura 61 – Peneiramento do solo tipo TPA para extração dos fragmentos de cerâmica pré-histórica, tendo como base uma grade de cama do hospital modelo construído e deixado por Henry Ford.

 

O fantástico de tudo isto, é ver como a gente não se toca nos valores históricos e nos objetos e móveis importantes que faziam parte de um dos melhores hospitais da região. A peneira empregada para o fracionamento do solo TPA e retirada dos fragmentos de cerâmica arqueológica e restos ou detritos vegetais, foi montada sobre a estrutura de uma cama hospitalar (Figura 61), subtraída do hospital exemplar, desmontado recentemente pela administração municipal de Aveiro, segundo informações da população local. Vários objetos desse orgulhoso hospital estão jogados neste local. Parece um ato de loucura, mas é falta de sensibilidade.

 

Figura 62 – Os fragmentos de cerâmica pré-histórica e torrões de barro jogados no carrinho de mão para descarte. Cacos cerâmicos são a fonte da fertilidade continuada segundos as pesquisas de Costa et al (2004).

 

Fomos andar pela vila denominada Americana, nome escrito num pedaço de PVC de forro recente, pregado em mal gosto no tronco da mangueira, por sinal muitas delas com frutos maduros e saborosos. Não perdemos a oportunidade de coletá-las, chupá-las, as mangas, e ainda fazer uma reserva para a viagem. Ao longo da rua larga e arborizada casas majestosas ainda tentavam sobreviver às intempéries humanas (Figura 63). A impressão que se tem é que há um desejo estranho de apagar a memória. Tanto que referência ao ricaço americano Henry Ford é mínima. Numa escola se encontrou um pequeno quadro talvez de 30 por 20 cm com uma cópia “xerox” de foto desbotada de Henry Ford publicada em algum jornal ou revista. Parece uma “desconstrução” intencional, usando o termo “politicamente correto da atualidade” que se auto intitula progressista e defensor do bem. Até mesmo as belas residências de então parecem viver esse mesmo drama, que ainda não se concretizou por exigir muito esforço, pois foram construídas para longa vida. Muitas surpresas, muita tristeza e muita imaginação surgiram-nos durante a caminhada no sol de lascar o cérebro. Pensar isto como era no passado distante em plena selva amazônica no rio Tapajós é quase assustador. Tinha gente de muita fibra, destemida, sonhadora, também, mas que foi vencida.

 

Figura 63 – Casa típica da vila Americana, ainda em bom estado de conservação, mas já com a famigerada puxadinha, desnecessária.

 

A imagem da figura 63 ilustra um dos tipos de residência da vila do projeto inicial de Fordlândia ainda parcialmente intacta, mas já com a famigerada puxadinha. Foi nos permitido adentrar nesta linda casa dos anos 1929/1940 em plena floresta tropical do médio Tapajós. Fica na vila Americana, como é conhecida. As salas são amplas, arejadas e iluminadas naturalmente, os quartos são também amplos, com móveis embutidos, banheiros com banheira e o material hidráulico em especial as torneiras ainda quase impecáveis. Na cozinha os armários ainda em parte intactos, com suas enormes pias. O piso em ladrilho hidráulico ainda insiste em perdurar.

No retorno da vila Americana o nosso desbravador Ubirajara, o Bira, saiu do caminho geral, instigado por alguém do local, que lhe contou uma história de que o exército brasileiro tinha apreendido uma carga de mineral valioso, que se encontrava depositado no alto de um pequeno morro, próximo a margem do rio. Bira ao ver o material, de estranho e brilho cativante, também se encantou e correu a nossa procura. Queria saber o que era. E lá fomos nós. A nossa frente, em sol escaldante, sobre terreno desnudo raspado por lâmina de trator, amontoavam-se blocos centimétricos a métricos (Figura 64) de uma rocha em parte argilosa, estratificada, rica em lentes, bolsões e vênulas de mineral fibroso, sedoso, dureza baixa, por vezes placoso, que um geólogo principiante não poderia errar na identificação, simplesmente GIPSO. Exemplares belíssimos foram garimpados por aqueles que nos acompanhavam. Valeu a pena, Bira. Provavelmente o gipso foi lavrado para possível indústria cimenteira de Itaituba, insumo fundamental para produção de cimento portland.

Análises químicas realizadas posteriormente por mim por FRX portátil (Figura 65) do material considerado no campo como gipso demonstraram-se compatíveis com o domínio deste mineral, e presença de P2O5 tanto nesse material quanto em fragmentos de cerâmicas colhidos no descarte do peneiramento do solo do viveiro de mudas de projeto do governo. Na coluna da esquerda as análises do gipso e na da direita dos fragmentos de cerâmica descartados, o lixo formado desse material, restos vegetais e outros materiais não plásticos. Análises mineralógicas por DRX confirmaram então o domínio de gipso. O mineral correspondente ao teor de P2O5 não foi, infelizmente, identificado pela DRX.

 

Figura 64 – Bloco sub-métrico de rocha estratificada constituída por gipso granular e gipso fibroso nos planos de fraturas.

 

Figura 65 – Composição química de amostra dominada por gipso fibroso a esquerda e de fragmento cerâmico coletado no lixo do peneiramento de solo empregado para formação de mudas em Fordlândia.

 

Figura 66 – Imagens na região norte de Fordlândia, onde então viviam a grande maioria dos operários. À esquerda em cima  hidrante usurpado; a sua direita um modelo de casa, ampla; em baixo à direita a casa da senhorita e colegas protegendo-se do sol escaldante; e à sua esquerda a parte frontal da escola.

 

As imagens da figura 66 são contundentes, como as demais. O hidrante sangrado, transmitindo água, fornecendo água às residências, uma usurpação de sua função nobre, numa forma preguiçosa de brevemente perder tudo. Também ilustra um outro estilo de casa, simpática, ainda bem conservada ou mantida como tal. Nas ruas operárias visitamos um outro modelo de casa, original, grande, bonito, em bom estado, onde entabulamos uma boa conversa com a senhora e seu neto, moradores e proprietários da mesma. Ela está com 80 anos, viúva de marido que trabalhou para o Ministério da Agricultura em Fordlândia e é também aposentada por serviços. Nos recebeu com muita satisfação e longo diálogo prazeroso. Seu jardim é muito bonito, rico, tendo aos fundos da casa horta e roçado. Nessa mesma rua parte de nossa equipe se protege do sol escaldante representada pelos professores Rosemery, Moacir e Bruno, que não entregaram os pontos. Constrangia a parte da equipe as pichações “Fora PT”!

Entramos em simpática escola, pois suas portas estavam escancaradas, e sem ninguém. Lemos os vários cartazes escolares fixados e pendurados na parede de entrada e vimos um que nos chamou a atenção. Finalmente uma fotocópia emoldurada de Henry Ford (Figura 67) a partir de algum artigo de jornal, aparentemente, que parece ser a única homenagem ao grande empreendedor, que nunca esteve pessoalmente no local.

 

Figura 67 – “Portrait” de Henry Ford, na verdade uma surrada fotocópia de um provável jornal que fizera menção ao trabalho deste grande empreendedor.

 

Eram casas bonitas, de alvenaria e madeira de lei, arejadas, do bom e melhor, mas poucas sobreviveram ao descaso, umas só como escombros, outras se vê apenas a base de alvenaria, outras insistem em sobreviver, mas em parte com famigerada puxadinha (Figura 68).

Destacam-se ainda o robusto sistema de esgoto sanitário (Figura 68), o sistema de água subterrâneo que aflorou em frente à escola (Figura 66) e os hidrantes, que ainda teimam em subsistir, malgrado a tentativa de destruí-los ou de desconhecê-los.

O casarão à beira do rio, imponente, com amplos aposentos, está em processo acentuado de degradação (Figura 68).

A figura 69, uma imagem aérea de 1933 dá uma ideia do que foi Fordlândia e nos permite comparar com a situação atual.

 

Figura 68 – Outro modelo de casa operária com puxadinha; à direita outro modelo de casa, ampla; abaixo o casarão do gerente; e finalmente sobrevivente magnífico do sistema de drenagem subterrâneo.

 

Foi um longo dia em Fordlândia, com muitas observações e diálogos, além de ao final da tarde um banho refrescante na praia da Prainha, onde fomos recebidos como gringos. As pessoas não nos informaram da presença de arraias, porque não sabiam se falávamos português. Paira na atmosfera da vila um ar de desconfiança, como se os transeuntes estivessem à procura de dados para escrever uma fantástica história, e assim se enriquecer às custas das informações tidas como exclusivas do local. É um pouco estranho. Deixa a impressão que houve nos tempos recentes alguma atividade de catequese ideológica.

A noite fizemos nossa reunião rotineira para avaliar os acontecimentos do dia e preparar a programação para o dia seguinte (Figura 70). Elas se tornaram ótimas, descontraídas e enriquecedoras. Em geral a realizávamos no deck da elite e após a janta. Tínhamos sempre que atentar aos mosquitos. Muitas vezes a reunião era praticamente realizada às escuras, pois as lâmpadas acesas atraíam hordas infinitas de insetos insuportáveis. Como de costume a programação foi escrita em cartolina grande e afixada pelo prof. Anderson na parede da escada que interligava os decks da plebe e da elite. A professora Rosemery de vez em quando ia enriquecendo a cartolina-programação com belas caricaturas chamativas, que retratavam cenas inusitadas captadas ao longo do dia.

 

Figura 69 – Vista aérea de Fordlândia em 1933. Fonte: https://otrecocerto.com/2018/01/10/fordlandia-a-historia-da-cidade-utopica-que-henry-ford-construiu-na-amazonia/, acessado em 14.08.2018.

 

Figura 70 – Reunião do dia 17.10.2018 às 21:21 h após o jantar e com a turma já bastante cansada e pensando na rede. Era a segunda noite que pernoitávamos no porto de Fordlândia. No dia seguinte, iríamos navegar em boa parte pela margem esquerda, já fazendo a curva de retorno.

 

Dia 18.10.2018:

Às 6:00 h levantamos âncora e deixamos a lendária Fordlândia, com o sentimento de ter cumprido e atingido um dos objetivos fundamentais de nossa viagem pitoresca. Ao tempo de Henry Bates não existia, ele nem sonhava com alguém fosse ter tal ousadia. O Gênesis II atravessava as límpidas águas do Tapajós indo para sua margem esquerda, quase em frente a Fordlândia. Nosso destino: Urucurituba, conforme a programação (Figura 71). O café foi servido enquanto navegávamos para lá. Tudo se apresentava como mais um belo dia.

 

Figura 71 – Programação para o dia 18 e alguns adendos sobre os acontecimentos do dia.

 

Às 6:27 h: meditação no deck da elite (Figura 72) enquanto atravessávamos o Tapajós para Urucurituba. Outros insistiam em permanecer no “pano” gostoso, espreguiçando-se (Figura 72).

 

Figura 72 – Meditação no deck da elite enquanto atravessávamos para Urucurituba. Era lindo o despertar do sol no rio Tapajós saindo da toca detrás das montanhas de Urucurituba (Figura 72), já às 6:27 h.

 

Figura 73 – Sol nascente nas montanhas de Urucurituba.

 

Após alguns minutos de travessia já era possível vislumbrar Urucurituba, em que é possível delinear com dificuldades os traços longínquos do seu casarão (Figura 74) às 6:35 h. Muitas histórias meio fantasiosas emergiram a partir deste casarão, que parece ter sido construído entre 1830 e 1851. É de fato uma grande casa de alguém com tino e poder, um desbravador, certamente, no tempo ainda da escravidão e da exploração das drogas do sertão e dos engenhos de cana. O látex chegaria logo depois.

 

Figura 74 – Vista geral a partir do rio Tapajós da vida de Urucurituba vendo-se os traços gerais do casarão.

 

Às 6:43 h da manhã estamos fundeando em Urucurituba. Com o auxílio de nossa lancha chegamos à terra firme. O porto é tudo: banheiro (e aí quase tudo), lavanderia de roupa, de “louça” da cozinha, lazer, e até porto (Figuras 75 e 76), é como um celular, pode ser até telefone.

 

Figura 75 – Cenas e atividades matutinas na orla portuária.

 

Figura 76 – Cenas matutinas na área portuária, por exemplo lavar louças e banhar-se.

 

O jirau fincado no fundo das águas do porto, coberto de palha e folha de zinco, meio maltrapilho (Figura 77), serve, como já escrito, para lavar, lavar e lavar qualquer coisa, tudo; amornar! Nas águas, mãe e filha também se lavam e se deleitam, pensam, filosofam, despreocupadamente, sem colete salva-vidas, sem qualquer EPI. Imaginem tal cena na cidade grande, desenvolvida, progressista, ou numa empresa de pequeno a grande porte, auto fiscalizada e fiscalizada pelos inúmeros órgãos de governo voltada para a segurança e a saúde de seus empregados/colaboradores. Os próprios a exigir da empresa “exploradora” o fornecimento desses serviços. Pois é, nestas vilas e em milhares de outras delas na Amazônia, para se restringir apenas a uma região do Brasil, que a vida assim se passa, nada acontece, onde nem se pensa sequer em tais serviços, se quer se sabe que tais existem. É a liberdade! Eu pessoalmente vivi tudo isto, sobrevivi e insisto ainda em vivenciar, embora com outro olhar.

 

Figura 77 – Cenas do cotidiano matutino. A mãe banha o seu baby despreocupadamente. Ao lado esquerdo no alto postes de concreto anunciam a chegada da energia elétrica, luz para todos.

 

Ao fundo o Gênesis II soberbamente ancorado entre o porto e uma ilha em barra de areia já vegetada. É um processo geológico rápido e mutável. Ele não pode encostar em terra firme, o continente, pois tem muitas pedras no leito do rio e a água é de pouco calado (Figura 78). O transbordo foi realizado com a elegante voadeira em duas viagens consecutivas. Logo à frente uma senhora lava roupa e claro, se banha. São 7:19 h. Percebemos que a população começava a se movimentar. Meninos e meninas fardados caminhavam para a escola, despreocupadamente (Figura 79). Parecíamos intrusos, mas pensando bem, éramos mesmos. Nós chegamos um pouquinho antes dos escolares. Uma escola sem paredes, apenas uma grade simples de meia altura, em madeira, e qualidade duvidosa, com cadeiras espalhadas desordenadamente, malcuidadas, mas voltadas para o quadro negro que agora é branco, moderno, para pincel, e um pequeno palco, também recebia seus primeiros escolares (Figura 79). Professora Rosemery até ensaiou uma ligeira apresentação. Mas me senti um intruso desrespeitando o sagrado espaço da escola. Saí. E do seu lado, não por surpresa, muito lixo. Uma vergonha! Um quadro infelizmente rotineiro, que não desperta qualquer indignação da população, faz parte, parece natural, uma pena. Os ensinamentos ou reportagens divulgadas ampla e repetidamente nas mídias televisivas (a TV está em quase todos os lares) parecem não surtir efeitos, pertencem ao imaginário. Intrigante! Uma simpática senhora postada em pé em seu belo jardim, coisa rara nesta redondeza, se orgulhava do mesmo e nos cumprimentava alegremente, e puxou conversa divertida, e já comparava as suas duas arvorezinhas mais frondosas com os dois candidatos à presidência do Brasil em segundo turno, vermelho e verde-amarelo. Ela ria frouxamente.

 

Figura 78 – O Gênesis II ancorado próximo a linha da praia e a frente o “bucólico” banheiro desprovido de paredes, apenas um simples teto. As torneiras não têm tubulação finita, como não tem a imaginação perante este cenário.

 

Figura 79 – Imagens capturadas na vila. Acima à esquerda escombros do que fora uma capela elegante construída em pedra e tijolos manuais; a sua direita a escola; abaixo, escolares fardados indo para escola; e à esquerda abaixo, a igreja simples e bonita com o salão paroquial.

 

Mas nosso objetivo maior era o casarão (Figura 80), desde que nos contaram algumas histórias meio tenebrosas e/ou fantasiosas sobre o mesmo ontem em Fordlândia. Ele era relacionado à escravidão e maltrato dos escravos. O casarão é uma construção grande, de bom gosto, de amplos aposentos, que se encontra parcialmente em abandono, o que é uma pena. Fomos recebidos por uma jovem senhora, que nos permitiu adentrar a todos aposentos. Nos sentimos voltando ao tempo, pelo menos dois séculos antes. E é fantástico como uma obra como esta tenha sobrevivido a todas intempéries possíveis. Passeamos pelas varandas enormes com piso de cerâmica vermelha, adentramos os quartos enormes, com muitas janelas e portas interligando os mesmos entre si e chegamos antessala da cozinha e a própria cozinha, enorme. Na cozinha um forno de barro enorme se perdia na imensidão da mesma; no centro da antessala uma grande mesa com pernas de madeira de lei, torneadas; ao seu lado uma cristaleira antiga; um dos grandes quartos apresentava um esteio central para amarração de redes que radialmente iam se apoiar nos armadores em S e de ferro nas paredes laterais; portas largas interligam os quartos, intimidades, sem chances, nem pensar, ou então muita criatividade para alcançar o intento. Foi o que me veio a mente. Vimos compartimentos laterais acessíveis pelas varandas com depósitos de diversos utensílios, muitas garrafas de vidro antigas, telhas e pisos também antigos, até uma engenhoca portátil de moer cana (?), bastante deteriorada (Figura 80). Uma sala ampla voltada para a varanda da frente, guarda imagens de santos;  e o seu batente encontra-se bastante corroído. Essa corrosão é contada como resultado do arrastro das correntes dos escravos. Nossa dedução: o pisar e limpar pés ao adentrar o espaço sagrado, provavelmente causou o desgaste. Contou a senhorita que quase toda a mobília da casa foi levada pelos proprietários – herdeiros para as cidades de Aveiro e Santarém.

 

Figura 80 – O barracão e parte dos seus aposentos e utensílios.

 

Resolvemos apreciar o entorno do casarão e mais obras abandonadas, algumas já irreconhecíveis, estão por todo lado. É possível reconhecer que a vila está sobre um promontório rochoso raso, rodeado por uma planície lamosa, até aonde a vista desarmada alcança. E este promontório é formado por rochas básicas, tipo diabásio, a que correlacionamos ao evento denominado Penetecaua, de idade Mesozóica. Ele aflora às margens do rio, em frente ao casarão. Também numa parte elevada identificamos a base e os escombros de um possível espaço de assentamento do engenho de moer cana; ainda foi possível identificar no chão algumas peças sugestivas do mesmo. Ele se situava à direita do casarão, a sua frente e voltado para o rio. Era com certeza uma bela vista.

É possível imaginar quão bela não fora a igreja, a inferir das poucas paredes que ainda estão teimando ficar em pé. Nota-se que fora construída com tijolos em L para fortalecer o encaixe e a sustentação e também pedras. Estas estão representadas por arenitos silicificados ou mesmo calcedônia (Figura 81). Dá a impressão de que fora uma construção de bom gosto.

Infelizmente o lixo assola a vila por todos os cantos, inclusive nas escolas.

 

Figura 81 – Acima à esquerda a base de possível engenho de moer cana; a sua direita nas três imagens seguintes paredes e detalhe das mesmas da capela em tijolo em L e pedra; e no centro abaixo o afloramento de diabásio em frente o casarão; e a rua que leva ao casarão e passa pela capela nova.

 

Às 9:44 h nos preparávamos para embarcar no Gênesis II e então continuar nossa viagem com destino a Boim, um longo caminho pela frente, pelos menos 7 horas de navegação, nos esperava, onde prevíamos pernoitar. Mas valia a pena. Nossa lancha voadeira Berohoká (Figura 82) transladava os últimos passageiros para o Gênesis II. Vale ressaltar que foi em Boim que o botânico inglês Henry Wickman teria em 1875 coletado as 70.000 sementes de seringueira (Hevea brasiliensis) que foram levadas para Inglaterra, lá tratadas e postas a germinar, e então plantadas na Malásia e Sri Lanka. Essa história tem muitas versões e sempre está associada com biopirataria.

 

Figura 82 – Translado para o Gênesis II com auxílio da elegante lancha Berohoká em Urucurituba.

 

Durante o trajeto resolvemos ancorar em nova bela praia na margem direita do rio-lago Tapajós para coleta de sedimentos para datação geocronológica a partir de zircão, interessado maior, o prof. Moacir Macambira. Encostamos às 10:35 h (Figura 83). Ao fundo ilhas formadas sobre antigas barras arenosas. Aqui o prof. Moacir coletou seus 5 kg de sedimentos para datação geocronológica. Sem sombra de dúvida mais uma bela praia paradisíaca em parte já vegetada com árvores exóticas e com muito cipós (Figura 84). Formações vegetais com raízes entrelaçadas (raízes aéreas) se estabeleciam na praia, que variava de arenosa a siltosa, com intercalações de silte e argila, sendo que as camadas argilosas em geral continham muitos fragmentos de folhas e de galhos de árvores, na tentativa de contribuir com a formação de futura turfazinha (Figura 85). São intercalações de areia fina com argila rica em detritos de folhas e galhos vegetais. Do ponto de visto geológico/geográfico a exposição ocupa uma barra em dedo indicador anexada a terra firme, como é possível vislumbrar na figura 83.

 

Figura 83 – Reconhecimento da praia na margem direita para coleta de amostra para geocronologia. Foi também uma bela descontração para a equipe.

 

Figura 84 – Edna e Milson sob a sombra dos cipós na bela praia geocronológica.

 

Figura 85 – Acúmulo de detritos vegetais na interface areia – argila, como fonte potencial para formação de turfa.

 

Por volta das 11:38 h já singrávamos novamente as águas do rio Tapajós em frente à fazenda da família Estrela e Hildebrando, onde grassava uma perigosa voçoroca esculpida em conglomerado com ampla matriz argilosa, ocupando a frente de um belo anfiteatro natural, área de captação de água ou mesmo de afloramento do lençol freático, que foi desnudado pela formação de pasto com braquiária. Dias antes desembarcáramos aqui e tínhamos passeados pela praia e fazenda.

 

Figura 86 – Nova imagem da fazenda do casal Estrela – Hildebrando vendo ao fundo a serra com pasto e à esquerda a voçoroca.

 

Na imagem da figura 86 à sua esquerda é possível delinear a referida voçoroca, pela área alongada, desnuda, em cor amarela, que é a cor da matriz argilosa do conglomerado, bem como os caminhos de pisada do gado. O casarão está quase ao nível da praia, ao lado dele uma casa menor com as instalações para o gado.

Às 12:26 h por ocasião do almoço, navegando a pleno vapor nas águas verdes do Tapajós nos deparamos com nova bela paisagem praiana encostada nas montanhas e com simples e linda residência pitoresca, poética, admirando o rio. Uma bela combinação de relevos, de motivos, que formatavam essa fantástica paisagem (Figura 87). Aproximávamos-nos de Aveiro, novamente.

 

Figura 87 – Uma casa isolada na base do penhasco e tendo à frente uma bela praia de areias brancas.

 

Às 13:26 h, abaixo de Aveiro, já dentro do grande lago, passava por nós a toda velocidade a elegante barca de transporte de passageiros, Itaituba-Santarém, próxima a margem direita (Figura 88). Ela é toda fechada e por conta da alta velocidade, estimamos em 35 a 40 km/h, não permite apreciar de forma adequada a paisagem deslumbrante que se levanta das suas margens. Nosso “iate” Gênesis II singrava a 14 km/h, quase parado! Mas ideal para apreciar com deleite tudo que chegava aos nossos olhos ávidos por beleza e descobertas.

 

Figura 88 – Uma barca de passageiros singrando o rio Tapajós com destino a Santarém.

 

Às 13:36 h não resistimos a imponência dos penhascos esculpidos sobre a formosura das rochas sedimentares da Formação Alter do Chão e pedimos ao comandante para atracar, que logo obedeceu (Figura 89). Foi um dos mais belos afloramentos desta unidade em plena margem direita para deleite de todos, embora o sol estivesse nos obrigando a correr para as sombras, construídas pelos inúmeros arbustos no ombro da praia.

Na parte rebaixada do topo do planalto as águas escorriam continuamente pelo penhasco vermelho aparentemente formando uma película de óxido de ferro iridescente que atrai o olhar curioso a grande distância, foi o que aconteceu conosco. “O que é aquilo? Só vendo para tentar descobrir”. Um vale se abre entre as extremidades norte e sul desse planalto, parcialmente obliterado por barra de areia grossa, surgindo então um ligeiro lago intermitente, onde grassa vegetação típica de ambiente lacustre amazônico, como palmeiras diversas com destaque para jauari (Astrocaryum jauari) e buritis (Mauritia flexuosa), gramíneas diversas, além de muitas macrófitas e musgos, desenvolvendo um mundo multicolorido subaquático a aquático. As gramíneas reforçam o alto teor de sílica disponível nessas águas, já demonstrada pela profusão de cauixi, que são espongiários de água doce constituídos de opala. O cauixi foi empregado em larga escala em todo Amazônia além das fronteiras brasileiras como “tempero” para preparar a massa argilosa na confecção de vasos cerâmicos (Costa et al., 2004). Mas ao longo do tempo foi caindo em desuso, pois os povos antigos, já teriam percebidos que o cauixi causava problemas estomacais e irritações na pele.

Porém o surpreendente, será que é mesmo, é que o lugar foi muito apreciado para afiar e amolar artefatos de pedras ou melhor, líticos. Os afiadores e amoladores estão por toda parte. Era certamente um grande cenário de atividade humana na pré-história não tão distante.

A sequência estratigráfica (Figura 90), que no total exposto atinge cerca 40 m, compreende 1,5 m de espessura de arenito com belas estratificações cruzadas acanaladas na base, em contato abrupto sub-horizontal, linear e apelativo com argilitos maciços vermelhos, compactos, coesos, que ao se fraturarem desenvolvem arestas cortantes, insinuando superfícies métricas ligeiramente conchoidais, acima. Nas fraturas surgem finas vênulas de caulim, branco, clarinho, parece giz!

 

Figura 89 – Belos penhascos parcialmente vegetados, desenvolvidos sobre as rochas da formação Alter do Chão, em local logo abaixo de Aveiro, pela margem direita do Tapajós.

 

Os blocos no sopé estão enfeitados e enriquecidos com afiadores e amoladores mostrados nas duas imagens logo a seguir (Figura 91). Vênulas de caulim seccionam essas rochas como mostra em parte a imagem abaixo à direita. Milson protegido por seu guarda-chuva adquirido em Fordlândia admira o afloramento e pensa em seu filho geólogo Matheus, dedicado à sedimentologia. -Vou contar pra ele, que vai ficar com inveja, pensou e também me contou baixinho.

Figura 90 – Uma bela exposição natural no penhasco da formação Alter do Chão, que a erosão limpou recentemente. Sob o guarda-chuva Milson, a se defender dos intensos raios solares. Eram 13: 36 h. Sol escaldante, de lascar a mente.

Figura 91 – Afiadores e amoladores, uma oficina pré-histórica instalada nos arenitos da formação Alter do Chão.

 

Mas o sol escaldante que alumiava e atormentava as mentes no belo afloramento deixou baixas, imobilizando criaturas muitas ativas, agora inativadas no deck da elite do Gênesis II (Figura 92). Estava absorto no infinito. Um sono profundo e reparador às 15:41 h e foi longe.

 

Figura 92 – Uma siesta reparadora no deck da elite, na verdade uma baixa da alta insolação.

 

Belas paisagens varreram nossos olhos ao longo das horas que sucederam até nosso destino e desembarque em Boim, pela margem esquerda do rio-lago Tapajós. E já ao entardecer, com belíssimo por de sol, aportávamos ao abrigo praiano próximo a vila Boim. Eram 18:22 h. Simplesmente paradisíaco, com o Gênesis II em sua imponência de sempre, ancorado, com desembarque iniciando-se (Figura 93) já na penumbra. Estávamos na Reserva Extrativista Floresta do Tapajós-Arapiuns (Figura 94) segundo a placa aposta no ombro da praia de areia branca, parcialmente vegetada.

 

Figura 93 – Nosso belo abrigo para pernoite de 18.10.2018 para 19.10.2018, próximo a Boim, margem esquerda do rio-lago dentro da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns.

 

Figura 94 – Placa alusiva a Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns ICMBio. São 6.476 km2, criada em 6 de dezembro de 1998.

 

A nossa praia de pernoite apresentava areia branca, fofa, cantante ao ser pisada, com perfil íngreme e com níveis subparalelos a água de acúmulo de seixos de rochas, como arenitos ferruginizados, siltitos, arenitos e de quartzo de vários matizes, principalmente lascados, em forma de lâminas afiadas em seus vários estágios de confecção e/ou elaboração (Figura 95). Parecia um sítio de produção destes artefatos, em que a marola do rio-lago estava retrabalhando e formando cordões de materiais arqueológicos ao longo da praia. Fragmentos cerâmicos e até louças modernas fazem parte destes acúmulos, também. Os seixos tendem a ser discoides, de contorno triangulóide, por vezes quebradiços, portanto de baixa esfericidade, independentemente do material.

 

Figura 95 – Detalhe de acúmulos de seixos diversos em vários cordões subparalelos a linha d´água na areia da praia.

 

A forma de enseada conferida à praia é dada por pontões de pedras, representadas por arenitos com estratificação cruzada, mas ferruginizados, em que o mineral de Fe predominante é a goethita marrom escura (Figura 96). Esses arenitos afloram também em parte no leito do rio-lago e constituem problemas sérios e perigosos à navegação.

 

Figura 96 – Afloramentos de arenitos ferruginizados na praia da RESEX Tapajós-Arapiuns já na penumbra do anoitecer.

 

Nosso banho no rio-lago Tapajós (Figura 97) às proximidades de Boim, às 19 h, em pleno luar, em praia magnífica quase isolados do Mundo civilizado em águas límpidas e calientes, o banho foi óbvio, maravilhoso e reconfortante. Nossos antepassados que aqui habitaram, segundo os registros que observamos, tinham também muito bom gosto. Em seguida foi servido o jantar, com uma dosezinha da “mardita” Abaetetuba, umas piriguetes que insistiam em continuar a bordo, e finalmente a reunião de rotina para discutir as atividades do dia que se encerrava e do dia seguinte, em que Boim era o tema central (Figura 98).

 

Figura 97 – Banho refrescante na noite de 18.10.2018 nas águas do rio-lago Tapajós.

 

Dia 19.10.2018:

Figura 98 – Programação para o dia 19.10.2018.

 

Nosso pernoite aconteceu na praia próximo a Boim. Esta expressão na linguagem indígena significa cobrinha. Era inicialmente conhecida como Aldeia de Santo Inácio de Loiola, fundada pelos Jesuítas ainda no século XVIII. “Um aldeamento faminto, mas muito alegre, ventilado e sadio” segundo descrição do padre José Lopes em 1737 (https://pt.wikipedia.org). A lei de então obrigou a mudar de nome, e assim passou se denominar Boim. E pelo que observamos Boim continua como um local sadio, sem evidência de miséria, de fome, simples, ventilado, sem dúvida, e com muita gente alegre, principalmente os mais velhos. Manga e cajus grassavam aos montes. Matamos o desejo de comer manga e caju. A vegetação é de campos, mas tem bastante seringueiras, provavelmente, plantadas. Mas aqui teria Henry Wickman coletadas as 70.000 sementes desta árvore pródiga.

Na praia de Boim o dia amanheceu esplendoroso (Figuras 99 e 100). Às 6:12 h pisando novamente e com muito carinho as paradisíacas areias desta enorme praia, vivenciamos o lindo amanhecer gravado nas imagens 99 e 100. Ao fundo o Gênesis II com seus passageiros sendo surpreendidos pelo raiar do dia, e um cachorro solitário a procurar comida. Ontem à noite eram 7. Só se retiraram quando a prancha foi recolhida, saíram cabisbaixos, cientes de que naquela noite nada mais tinha para matar a fome rotineira e/ou costumeira.

 

Figura 99 – Colorido pôr do sol na praia da Resex Tapajós-Arapiuns tendo ao fundo a silhueta do barco Gênesis II.

 

Figura 100 – São 6:24 h da matina, com sol nascente brotando da distante margem direita e iluminando um longínquo morro que representa a Serra Piroca em Alter do Chão. São cerca de 20 km de água daqui da praia até a margem em que sol está surgindo. É muita água e chão por baixo dela.

 

E então surgem as linhas de seixos na praia, linhas essas que correm em paralelo, serpenteantes, refletindo a curva de nível da subida das águas e o respectivo pulsar das ondas sobre a praia (Figura 101). Os seixos mencionados e descritos anteriormente ocupam essas linhas ou melhor faixas de seixos, zonas de maior energia das águas. Nesta imagem ao fundo no horizonte é possível identificar a pequena e bela igreja católica exaltando a vila Boim.

 

Figura 101 – Linhas de seixos e detritos vegetais paralelas entre si e a linha d´água ao longo da praia.

 

Já pela noite, tarde da noite e pela madrugada ouve-se ou vê-se gente caminhando pela praia com lanterna na mão à caça de tartarugas e seus ovos. Do medo surge a ideia de que sejam assaltantes das águas ou piratas d`água. São muitos e parece que pelo menos nesta noite passada, a caçada foi infrutífera. Mas nossos tripulantes por sua vez foram pescar e foram bem-sucedidos. Tivemos peixes.

Um dos tripulantes tentou desenhar o caminho da tartaruga na praia (Figura 102), quando esta sai das águas, sobe o frontão de areia, descobre o local adequado para desovar, escava com suas robustas patas um buraco, desova, cobre os ovos e exausta, mas mesmo assim a toda velocidade volta para as águas, onde se sente segura. Nosso artista é observado pelos cachorros, que agora já são em maior número, do que hora antes.

 

Figura 102 – Um de nossos tripulantes simula o caminhar da tartaruga subindo a praia para desovar sendo observado pelos cachorros.

 

Após o café fomos reconhecer melhor a praia e suas redondezas. O corpo praiano é grande e se estende por quilômetro e tem uma forma de serpente, dadas por pontas de pedra (arenitos ferruginizados) e enseadas. As faixas de seixos sobre a areia acompanham o serpentear da praia. O corpo é bastante inclinado para água e no ápice atinge quase 5 m de altura. Em sua retaguarda assume topo plano, com areia mais fina e melhor selecionada, com tonalidade branca, e que avança sobre um alagadiço intermitente, com vegetação arbustiva, em que o jauari (Astrocaryum jauari, família Arecaceae), típico de alagadiços e planícies de inundação, e os cajueiros (Anacardium occidentale) (estão apenas próximos a areia da praia) são os principais vegetais, além de outros arbustos menores ilustrados nas imagens seguintes. Por felicidades os cajueiros estavam carregados de frutos amarelos, vermelhos, saborosos (Figura 103). Edna, Bira e Milson fizeram a festa. Pensavam no suco. Eu comia os cajus mais apetitosos. A impressão que se tem é que parte dessa areia nesta zona já foi parcialmente selecionada e transportada pelos ventos que sopram da água para praia. Marcas de ondas são visíveis, da mesma forma pequenas barcanas. Finalmente mais a norte na praia nos deparamos com uma grande profusão de seixos de quartzo, a maioria laminados por pressão, intencionalmente, para obtenção de lâminas líticas, indicativas de atividade de indústria lítica no passado pré-histórico, e que as ondas mais fortes reorganizaram e depositaram próximo ao pontão de pedras. Provavelmente aqui mesmo, no entorno era o parque industrial lítico pré-histórico. Cada peça era mais bonita que a outra, e foi possível observar peças inacabadas até aquelas de fino trato. Todas elas confeccionadas a partir de seixos de quartzo hialino ou ainda mesmo leitoso, naturalmente já com forma tabular, mas ligeiramente arredondados (Figura 103).

 

Figura 103 – Imagens capturadas na praia de Boim, Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns. No sentido dos ponteiros do relógio: Jauari no aceiro da praia, arbustivo do alagadiço intermitente, casa de marimbondo em sino em árvore de porte; casal de cajus; paleopraia com formação de horizonte A de solo (Neossolo arenoso para o prof. Anderson?) e vegetação arbustiva densa, mais antiga; seixos de quartzo em parte lascados ao lado de seixos de arenitos ferruginizados e de rochas do Alter do Chão.

 

Antes de zarparmos para a vila nos deixamos fotografar automaticamente na proa do Gênesis II na bela praia de Boim (Figura 104); o apoio para a câmara fotográfica foi uma moto intrusa que surgiu de um barco vizinho e que estacionou em frente a proa de nosso barco. Dada a profundidade rasa para o porto e também para o igarapé que bordeja a vila, fomos então de voadeira para vila e deixamos o Gênesis II ancorado aqui, que posteriormente navegou para ilha desenvolvida sobre barra de areia em frente a vila, agora vegetada, e novamente por jauari, principalmente, para ficar mais próximo da vila e facilitar o nosso reembarque.

 

Figura 104 – Acima da esquerda para a direita: prof. Bruno Figueira, Priscila, Rayara, Ubirajara, Profa. Rosemery e Prof. Anderson; abaixo: Edna, Milson, Marcondes e Prof. Moacir Macambira. Time completo. No deck superior alguém nos observa.

 

Às 8:48 h já desembarcava o primeiro grupo nos arredores de Boim. Águas muito rasas, límpidas, correntes, frias, que fugiam de um lindo igarapé e adentravam na imensidão das águas quentes do rio-lago Tapajós. O desembarque foi “glamoroso” em terreno lamoso, cheio de algas e musgos, e cauixi (Figuras 105 e 106). Este dá uma pira doida. É muita coceira infernal. Os arbustos por todos os lados estavam cravados de cauixi. No chão da praia também muito cauixi ou formações de cauixi desprendidos dos arbustos.

 

Figura 105 – Gracioso desembarque no fundo lamoso rico em cauixi próximo à vila de Boim. Calçados a prova d´água e a lama, certamente.

 

Enquanto nos localizávamos e tentávamos marchar eis que surge aparentemente do nada uma pequena e idosa senhora, muito alegre, esperta, que foi logo nos cumprimentando efusivamente. Apresentou-se como Senhorina Fernandes, filha de do Sr. Chapelão (Figura 106). Falante, espirituosa, a turma contrapôs e não perdeu o rebolado, entabulou uma conversa, ela é das nossas. E então ela perguntou: O que é que vocês estão fazendo aqui? – Estamos apreciando a paisagem, observando a natureza… Neste ínterim ela olhou para si mesma, para a sua bermuda surrada e alguns buraquinhos… – E então vocês já olharam pra minha roupa velha, puída. E continua – Até hoje não sei o que vi no seu marido, para ter casado com ele, mas continuo procurando”. Mas conta que alguém da família que foi a Manaus recauchutar o corpo e voltou de lá deslumbrada com tudo o que viu e deixou um ensinamento. Foi caro e aí ficou o ditado: “Tu quer pegar, pega, mas é bunda no chão e dinheiro na mão”.

 

Figura 106 – À esquerda um aglomerado típico de cauixi encrustado no ramo de arbustos crescidos na praia silte-lamosa sob influência das águas do igarapé e à direita a Senhorina Fernandes, que chegou de mansinho, confidente e o seu cão seu cachorro observado de soslaio pela profa. Rosemery.

 

Como dito anteriormente os cauixis são espongiários de água doce constituídos de sílica opalina, o que indica que as águas dessas drenagens contêm elevado teor de sílica dissolvida, que alimenta estes organismos. Essas espículas foram empregadas com muita frequência na produção de cerâmicas pelos povos pré-históricos da Amazônia no seu todo, visando melhorar a plasticidade da matéria-prima argilosa (Costa et al., 2004 a, b).

Por volta das 10 h miramos o belo igarapé de águas frias e límpidas correndo sobre estrato de musgos multicoloridos a avançar sobre a praia, dilacerando-a até adentrar no rio-lago Tapajós de águas quentes (Figura 107). Em seguida alcançamos a longa passarela que se converte em ponte sobre o dito igarapé. Ela foi construída com pranchas de madeira, com nenhum acabamento, espaçadas a intervalos regulares, dotada de pranchas verticais para impedir a circulação de veículos motorizados, como as motos, uma lombada sem lombo, para tentar coibir a passagem de motoristas deseducados desses veículos, que infestam de loucura as ruas e estradas do Brasil, e parece que aqui por Boim, também. A passarela conduz até os escritórios do ICM-Bio Resex Tapajós-Arapiuns.

As margens do igarapé são vegetadas por palmeiras exóticas (uma ilustrada na imagem a seguir), por seringueiras, por outras árvores típicas de igapós (Figura 108) e o piso do terreno rico em restos de folhas, galhos e troncos, apodrecendo em ambiente de baixa oxigenação e exalando um certo odor de enxofre, numa tentativa de formar turfa. Daqui é exportado material negro particulado e complexado para as águas do igarapé, imprimindo-lhe a cor escura de suas águas. A densa mata que se abate sobre o leito desse igarapé impede o aquecimento de suas águas, que também brota dessa mata densamente sombreada. Infelizmente muito lixo se aglomera no chão do terreno e nas águas, registro da presença (des)humana.

 

Figura 107 – Cenário para nenhum naturalista colocar defeito refletindo o meio aquoso do igarapé e a vida vegetal e animal dentro e no seu entorno. Ao fundo o rio-lago Tapajós no infinito.

 

Figura 108 – Nas imagens no sentido horário a palmeira exótica a ser identificada por Anderson Braz e sua inflorescência, com os frutos desabrochando; a mata ciliar e o leito do igarapé com suas macrófitas aquáticas e seus musgos; uma Fabaceae (Leguminosae) e suas vagens; finalmente o prof. Anderson tenta convencer que estamos diante de uma folha 5-pinada.

 

Depois deste lindo e gratificante passeio pelo igarapé junto a ponte-passarela, fomos conhecer um pouco da vila de Boim. Topamos logo com os cajueiros repletos de frutos deliciosos, eram tantos, que o chão estava forrado de frutos apodrecendo. Não resistimos e passamos a degustá-los (Figura 109). Encostamos nuns banquinhos e num quiosque e logo alguém se aproximou, o Sr. Inácio, e começou a contar um pouco da história do local, e principalmente da última enchente, em que as águas chegaram na rua e quase avançaram sobre o seu bar e residência. Isto aconteceu em 04.06.2009. Ele mostrou a foto que recebeu devidamente autografada de um ilustre visitante que por aí passara no exato momento (Figura 109).

As ruas não têm calçamento, se pisa no próprio solo muito arenoso, por vezes surge uma pontinha de crosta ferro-aluminosa laterítica ou de arenito ferruginizado, similares aqueles que afloram nas praias. Casas tipo Minha Casa Minha Vida, novas, com placa fotovoltaica, bem como postes povoados por abelhas, cupins e formigas. Certamente o programa Luz para Todos. Algum quintal com roça (mandioca) e cajueiros, e também de vez em quando se destacam seringueiras alinhadas, aparentemente plantadas (Figura 109), quintais varridos e sinais de queima de lixo orgânico de restos de plásticos e de papel. Mas foi por estas bandas que Henry Wickman coletou as 70.000 sementes de seringueiras, insistimos em comentar.

 

Figura 109 – A imagem da foto mostrando a enchente beirando a rua com o bar-casa do informante e proprietário da foto; o cajueiro carregado de cajus apetitosos; as casas de padrão governo com o painel fotovoltaico no telhado. A “luz para todos” está chegando e aí “não precisa mais desligar” o que antes nem ligava. “É de graça” e lâmpada não gasta!!!, não custa nadinha, ou deve ser distribuída em pacotes tipo conversor-antena; nos postes de madeira também se instalam animais silvestres como abelhas, é mais fácil; seringueiras teimam em crescer nos quintais, parecem plantadas, fruto dos Projetos Belterra, que está logo do outro do rio, esse logo é de algumas dezenas de quilômetros. E olhe que o rio é largo pra danar.

 

A vila é salubre, de solo muito arenoso, sem esgotos fluindo à superfície do terreno, mas desprovida de calçamento. Bueiros de concreto e tubulações sugerem escoamento sub-superficial de águas pluviométricas e/ou esgoto. O posto de saúde é simpático, com atendentes, mas aparentemente sem cliente talvez por conta do horário de nossa visita, quase meio-dia, já de sol escaldante. Mercearias e bares contam-se nos dedos da mão, repletos de produtos de fora.

A imponente e ainda isolada igreja católica Santo Inácio de Loiola, na margem do rio, orienta o viajante fluvial e chama atenção também em terra. O trapiche parece exagerado para o parco movimento e construído às pressas.

Quando cheguei à praça ao lado da bela igreja uma boa parte de nossa equipe, Anderson, Macambira e Rosemery, apreciava a glacial no calor de Boim. Enquanto isto Milson e Edna esbanjavam saúde no banco em frente à Unidade Básica de Saúde, à sombra de uma bela árvore, que não contava com nenhum cliente. O mesmo acontecia com o prédio Tele Centro. Certamente era o horário do meio-dia sob forte insolação (Figura 110).

Na esquina uma simples e simpática casa branco-azul se destacava do cenário e deixava antever na esquina um sistema de drenagem, de tempos áureos, talvez (Figura 110).

 

Figura 110 – Cenas e retratos em Boim ao meio-dia vivenciados pelos pitorescos: apreciando uma geladinha; à sombra da árvore em frente o posto de saúde; o tele centro bonito e grande, mas sem cliente; a casa azul e branca com seu cercado e a antena que traz o mundo pra dentro de casa e na esquina o sistema de drenagem, algo inédito. As ruas sobre o solo arenoso e fragmentos de crostas.

 

Mas o surpreendente foi a história do Grupo Escolar. Uma senhora nos perguntou se já havíamos visitado o Grupo Escolar, cujo prédio fora embargado pelos bombeiros. Como é isto? Sim, foi embargado pelos bombeiros. Onde fica? – Bem ali, logo após o Tele Centro. – Recordo-me, passamos por ele “indagorinha”, sem ninguém, mas não vimos o prédio. No sol escaldante, eu, Milson e Edna, corremos para lá. O Gênesis II já nos esperava. O tempo era curto. Eis que logo surge à nossa esquerda um grandioso prédio de dois pavimentos, imponente, parecia novinho em folha, imerso em um matagal baixo (Figura 111). Atrás um prédio rés do chão, dois blocos, meia-parede, cartazes afixados, a escola atual. Muita manga e caju. O prédio da escola, embargado, imponente, fechado, maltratado, abandonado. Nos aproximamos, subimos a sua escada da porta central. Sinais de depredação, marcas de balas nos blocos-tijolos de vidro. O prédio parece ser de bom gosto e não traduzia uma construção de nosso tempo. Eis que surge a nossa frente no alto da porta uma placa, seria de inauguração (?), cujos dizeres nos deram uma possível explicação para o abandono da obra concluída, prontinha da silva. Parece um revés político. Todos militares da alta patente, um deles Ministro da Educação, ao tempo em que foi feita a reforma universitária e em Belém instalado o Campus Universitário do Guamá, e também inaugurado os três prédios da Geologia (ensino e pesquisa via SUDAM). A obra foi tão bem-feita que resiste até hoje às intempéries. São pelos menos 47 anos em pé e quase perfeito. Mas suas formas pareciam de outros tempos, principalmente o espaço interno, com área de sol, como nos conventos. Na placa tão elucidativa afixada na parede sobre a portão de entrada estão os dizeres:

“Grupo Escolar Municipal de Boim

Prédio Adquirido na Interventoria Federal

Com Auxílio do P.N.E

Ministro da Educação

SENADOR JARBAS G. PASSARINHO

Governador do Estado

TEN. CEL. ALACID DA SILVA NUNES

Interventor Federal

CAP. ELMANO M. MELO

31.01.71″

Mas sem me conformar com tal situação fui procurar novas informações e encontrei a publicação “O prazer de conhecer BOIM, a capital do Tapajós”, de 2012, disponível no site http://www.saudeealegria.org.br/wp-content/uploads/2015/04/Cartilha-Boim.pdf, acessado em 06.11.2018 às 11:50 h. E em sua página 12 se descobre que o prédio na verdade fora construído pelos padres franciscanos em 1956 como convento e então adquirido no início dos anos 1970 pela Interventoria Federal com auxílio do PNE (Plano Nacional de Educação), sendo ministro de Estado de Educação, o Senador Jarbas Passarinho, que era coronel. Em 31 de janeiro de 1971 passou a funcionar como Grupo Escolar Municipal de Boim, sendo sua diretora a Sra. Estela de Sá Figueiredo. Sem se precisar a data, passou depois a funcionar como Escola Dom Frederico Costa, até 2009, quando o prédio foi embargado pelo Corpo de Bombeiros, que ordenou sua desocupação. Motivos: “… sua estrutura apresentava grandes rachaduras”, segundo a publicação “O prazer de conhecer BOIM…”. Recomenda-se veemente a leitura deste trabalho. Segundo essa mesma publicação “A comunidade buscou junto ao poder público a sua restauração, mas não conseguiu”. Também assim se expressa em sua página 13: “”Após a sua “inutilidade” foi abandonado completamente. Ainda guarda em seu interior documentos de alunos, livros e alguns móveis da antiga escola””.

Surpreendente: o prédio continua em pé, intacto, imponente, 9 anos após a interdição. Era governadora do Pará no período da desocupação Ana Júlia Carepa (2007-2011), então do PT e prefeita do município de Santarém (2005 – 2012), ao qual pertence Boim, Maria do Carmo Martins Lima, do PT. Vale a pena refletir e retomar o prédio às suas funções fundamentais, corrigindo os problemas estruturais, que não parecem tão graves assim, agravados, talvez, pelo descaso dos anos seguintes de abandono. Segundo a publicação e a população ouvida e nosso testemunho visual é o prédio que mais se destaca na região.

 

Figura 111 – As imagens são do Grupo Escolar Municipal de Boim. No sentido horário o prédio em sua pujança cercado pelo mato rasteiro; a placa de inauguração de 1971; o prédio visto por trás; o interior do prédio com sua larga varanda; tijolos de vidro quebrados e perfurados, aparentemente à bala; e parede lateral do prédio com cogumelos gigantes no canto superior esquerdo e ao fundo a escola atual, humilhada pela sombra do prédio imponente. Visto de longe, das águas do Ta, é ainda mais imponente.

 

Por volta do meio dia fomos transladados através de nossa voadeira para o Gênesis II, que nos aguardava ancorado ao largo do rio, evitando problemas com as pedras que brotavam do seu fundo raso, provavelmente os diabásios Penetecaua, ou melhor os arenitos ferruginizados, que afloram na praia. Estávamos carregados de manga e caju. Enquanto almoçarmos a bordo, zarpamos em direção a Santarém, visando pernoitar em suas redondezas, pois já nos aproximávamos da última jornada prevista em nossa Viagem Pitoresca, que seria o Encontro das Águas e Belterra, no dia seguinte.

Às 15:38 h parte de nossa equipe se deliciava em ler o livro de Henry Bates e de vez em quando apreciar a paisagem que se deslizava pela margem direita do Tapajós rumo a Santarém (Figura 112). Ao anoitecer vislumbramos as luzes distantes da cidade de Santarém. Aportamos em uma bela praia já em plena escuridão. Não desembarcamos, exceto o Sr. Ray e o prof. Bruno, que foi visitar a família. Bruno foi leva-la ao aeroporto na madrugada. Jantamos e nos reunimos para fechar a programação de nosso último dia da Viagem Pitoresca ao Tapajós.

 

Figura – 112 – Leitura a bordo. Henry Bates cativa. É como se estivesse viajando com ele a 167 anos depois.

 

20.10.2018:

Figura 113 – Programação para o dia 20.10.2018.

 

A nossa programação para o dia 20.10.2018 (Figura 113) incluía como planejado o encontro das águas em frente a cidade Santarém, em seguida o desembarque e despedida do Gênesis II, guarda de bagagens na casa do Prof. Bruno e finalmente visitar Belterra, agora de carro.

A praia de Itapari, de nosso pernoite 19/20.10.2018 era de fato bela (Figura 114). Na manhã de 20.10 aproveitamo-nos para o banho matinal e a espreguiçadeira, por sua lindeza. A cidade estava logo ali, por traz da mata e da curva do rio, mais ainda distante. A areia quartzosa apresenta coloração rosácea, e rica em fragmentos e seixos de diversos materiais, como quartzo leitoso, em forma angulosa e tabular, rocha, crostas ferruginosas, arenitos ferruginizados e detritos vegetais (Figura 114). Algumas conchinhas ainda com conchiolina foram observadas. Certamente a cor da areia refletia em boa parte as cores do sol ao amanhecer. No horizonte a cidade de Santarém era uma imagem deslumbrante.

 

Figura 114 – A praia de Itapari, de pernoite 19 a 20.10.2018; o Gênesis II fundeado; os diversos seixos e fragmentos na areia da praia; e luz do sol nascente sobre o vulto da cidade de Santarém.

 

Acordamos cedo e logo percebemos que estávamos de fato perto de Santarém, mas ancorados em uma bela praia de areias movediças e perfil escarpado. O Sr. Ray chegou com novos suprimentos para o café da manhã, que foi muito rico, saboroso. Forramo-nos para o longo dia que teríamos pela frente, sem pernoite, em Santarém. Enquanto isto navegávamos em direção ao belo encontro das águas, nem por isso famoso como o do rio Negro com o Amazonas em Manaus. Passamos pelo movimentado porto de Santarém, com navios graneleiros a postos aguardando embarque e desembarque bem comboios imensos de balsas (Figuras 115 e 116) também transportando grãos provenientes do Sul do Pará, mas principalmente de Mato Grosso, a partir do porto de Miritituba, em Altamira. Impressionam pela grandeza e organização. Imaginar que anos atrás esta atividade sofreu tentativas de embargo pelo radicalismo do Green Peace, felizmente frustradas. A população da cidade se rebelou e o Green Peace se retirou, como foi fartamente noticiado pela mídia televisiva da época. Santarém vivia uma grande crise econômica.

 

Figura 115 – Movimentação ao longo do porto de Santarém, com infraestrutura de guindastes gigantes, encostes, bem como um grande comboio de balsas; abaixo um imenso navio, o prédio do antigo Hotel Tropical da Varig, hoje alugado para a UFOPA e à direita barcos menores e o morro de arenito caulínico, desnudo, desfigurado pela erosão antrópica.

Figura 116 – Comboio de balsas com grãos no rio Tapajós rumo a Santarém. Fonte: https://revistagloborural.globo.com/Colunas/caminhos-da-safra/noticia/2018/03/hidrovias-do-brasil-inicia-transporte-rodoviario-de-mt-miritituba-pa.html, acessado em 07.11.2018.

 

Fomos ao encontro das águas entre os rios Amazonas (barrento) e Tapajós (claras). Sem sombra de dúvida encantador. Em frente a cidade de Santarém (Figura 116). Foram muitas fotos e muita admiração e uma sensação de pequenez.

Às nove horas ancorávamos no porto semicaótico da orla central da cidade (Figuras 117 e 118). A cidade aqui neste trecho fervia de gente embarcando e desembarcando, malas nos ombros, sacolas, urubus, escotos avançando a céu aberto para o rio, serviços de lanche por todos os lados, em meio a referida imundice e fedentina. Olhe que é um cenário de downtown. Os barcos ancorados, em paralelo, com a proa soberbamente apontada para cidade armam uma paisagem bonita, que é desfigurada pela sujeira que se alastra por terra e por água. No tempo de Henry Bates certamente não tinha tanto lixo, até porque não se tinha muito material para jogar fora, além do que a população era relativamente muito menor. Cada um de nós também colocou a sua trouxa nas costas ou se atracou a mesma no peito e venceu a imundice, e possível insegurança, e por entre transeuntes, pisoteou a areia da estreita orla, subiu a rampa e se deparou com a confusão de gente e de carros na avenida beira-rio. Cidade com traços de que já foi algo melhor. A muralha está em obra parada, a muralha de contenção da erosão fluvial. Por volta das 10:20 h de carro levamos nossa bagagem para o apartamento do professor Bruno (Figura 118), que se se tornou no quartel general até a madrugada do dia 21.10.2018. Foi a nossa salvação. Foi uma grande gentileza do Bruno. Ele foi o nosso baluarte para o sucesso desta bela viagem pitoresca ao Tapajós.

 

Figura 117 – A silhueta de Santarém e linha de encontro das águas escuras com as barrentas; os pitorescos no deck da plebe e prontos para o desembarque e tchau para o Gênesis II.

 

Figura 118 – E desembarque no porto de Santarém. Esgoto fedorento e urubus sedentos cuidavam da limpeza dilacerando restos de alimentos em putrefação. Em baixo à direita no amplo apartamento do prof. Bruno para guarda das tralhas e trouxas e banho no retorno de Belterra.

 

No apartamento do prof. Bruno nos preparamos para o circuito de carro para a agora cidade Belterra (Figura 118). Dois carros: a pick up do prof. Bruno e o carrinho vermelho do filho do Sr. Ray. Fomos apertados, gente demais e alguns acima do limite em tamanho; temíamos o controle nas barreiras policiais da BR Santarém-Cuiabá, por onde iríamos viajar. Mas deu certo, pois os menores abriram espaço aos grandes. Às 11:40 h já estávamos em pleno centro administrativo da hoje cidade de Belterra, sede do município de igual nome, que ocupa toda estrutura sobrevivente deixada por Henry Ford. Em parte, sobrevive com cuidados parciais, alguns intrigantes, intervenções sofríveis, maquiagens alopradas, abandono e até incêndios de grandes proporções, além de placas inaugurais oportunistas de administradores-políticos. Mas que poderia estar até pior, é certo, se deixado sob os prazeres da floresta. Dizem que agora a cidade e o seu patrimônio herdado estão recebendo melhores cuidados. É bem diferente de Fordlândia, pois ocupa terreno plano, alto, de solo argiloso com concreções ferro-aluminosas (Argissolos equivalentes à Argila de Belterra e até mesmo bauxita). Foi aqui que Wim Sombroek reconheceu e descreveu pela primeira vez a Argila de Belterra, um dos nossos motivos de ter vindo a esta localidade. Seria assim a sua “seção típica”. Wim Wombroek não fez qualquer referência às bauxitas da região, embora tenha dedicado longo tempo e muitas páginas aos latossolos amarelos que as recobrem, que ele mesmo os denominou de Argila de Belterra, mas a região comporta estes materiais, pois até encontramos no barranco do rio Tapajós material equivalente. A Argila de Belterra está diretamente ligada a elas.

Voltando a cidade, a vila de então foi construída em padrão fantástico, com ruas largas, casas arejadas, amplas, calçamento, serviço de esgoto, hidrantes, praças, escolas, hospital, igreja, jardins e bosques. Tudo isto ainda é possível vislumbrar, exceto o hospital Henry Ford que recentemente foi dizimado pelo fogo. No seu lugar estão erigindo um prédio para instalar o futuro Museu de Ciências de Belterra. Falta o desenvolvimento das ciências, mas quem sabe, chegue em breve.

Eu pessoalmente estava à procura da real Argila de Belterra. Ela apareceu meia feiosa, não convincente, capeada parcialmente com lixo por muitos lugares. Procurei encostas para melhor observá-la, mas também o lixo grassava. Mas ela estava lá. Viu-se blocos de material equivalente a crosta ferro-aluminosa com evidência de gibbsita, nódulos esporádicos de gibbsita (Figura 120). Era o material que Sombroek descrevera, mas sem reconhecer a gibbsita, portanto a bauxita. Material argiloso, “arenoso”, com essas concreções gibbsíticas que ele não fez referências, de cor amarela ocre. Coletei uma amostra. Na praça hoje rodeadas de casas transformadas em sedes oficiais de órgãos públicos, como prefeitura e câmara (Figura 119), encontrou-se monumentos edificados em crostas colunares de prováveis perfis lateríticos maturos (com evidencia a gibbsita), porém muito malcuidado (Figura 120). Não se sabe se é uma obra sub-atual, é de duvidar, ou se sobrevivente do tempo do Projeto Ford.

 

Figura 119 – Em Belterra uma grande casa ilustrada na figura acima à esquerda atende à sede da atual prefeitura. Ao lado fragmentos de crostas lateríticas tipo pele-de-onça correspondente a perfil laterítico bauxítico, provavelmente trazidos da redondeza.

 

Figura 120 – Casa típica do tempo do projeto Belterra, em Belterra, Pará; à direita um fragmento crosta ferro-aluminosa encontrado no centro de pequena praça.

 

Mas antes disto tudo nos deparamos com o matagal cobrindo uma obra interessante, abandonada e muito danificada, que parecia ser uma área de lazer, de banho e/ou chafariz, próximo ao sistema de captação de água, a 50 m da atual prefeitura. Parecia os escombros de uma possível área de lazer coberta pelo matagal. Milson e Bira fizeram uma rápida limpeza com auxílio do martelo de geólogo e uma vara, e descobriam uma parede com belos ladrilhos com simetria 4mm (Figura 121).

 

Figura 121 – Obras e escombros envolvidos pelo mato em pleno entorno dos órgãos administrativos de Belterra. A limpeza parcial e rápida descobriu os ladrilhos de simetria 4mm ilustrada nesta figura.

 

Após ligeiro passeio pela praça central, ampla, com algumas igrejas em seu entorno, com destaque à pequena Igreja Batista (Figura 122) do tempo do Projeto Ford, ainda intacta, decidimos seguir às recomendações do prof. Bruno para o almoço. Fomos então a uma área de lazer com restaurante na margem direita do rio Tapajós (Figura 123), que nos oportunizou descer o planalto de Belterra-Bauxita e apreciar lagos de água preta formados por barras arenosas do rio Tapajós, que seriam belíssimos, se não fosse a imundície que impera por toda parte, como parte dos transeuntes humanos.

 

Figura 122 – Igreja Batista da época do projeto Belterra de Henry Ford, na hoje cidade de Belterra, lixo e lama enfeiam a bela construção histórica.

 

Figura 123 – Peixaria em área de lazer na margem direita do rio-lago Tapajós, ainda no município de Belterra. À direita uma barra de areia seccionada por águas pretas e límpidas que brotam do sopé do planalto esculpido sobre Argila de Belterra e possíveis bauxitas.

 

Mas eu pessoalmente não me satisfiz com as exposições da Argila de Belterra em Belterra e na estrada BR 163 em retorno para Santarém procurei encontrá-la. Os campos planos e com evidência de colheita recente de soja surgiam a nossa frente, até que se desponta na margem oeste da rodovia um barranco tipo caixa-de-empréstimo de engenheiro de construção. – Para, para! E lá estava a Belterra, a Argila de Belterra. Ao lado, descarregado por caminhão e/ou amontoado por trator estava um monte de material formado por crostas ferro-aluminosas, sugestivas de bauxitas intemperizadas, modificadas por raízes e envolvidas por material argiloso tipo Belterra. Imediatamente coletamos amostras, eu e o prof. Bruno. Este último ficou muito feliz (Figura 124). Tinha material suficiente para seus experimentos.

 

Figura 124 – Exposição da Argila de Belterra na BR 163 (ponto amarelo no mapa ao lado) no município de Belterra. À esquerda o prof. Bruno sustenta um bom bloco de Argila de Belterra, feliz da vida. À direita exposição da Argila de Belterra e depósito de crosta ferro-aluminosa, empregado na construção de ruas de um provável loteamento.

 

Já escurecia quando deixamos o afloramento da Argila de Belterra (Figura 124). Chegamos em Santarém já noite e fomos direto para o nosso quartel general no apartamento do prof. Bruno. Banho, arrumação da bagagem e jantar na orla, alguns foram ainda para a “balada” e/ou curtiram as eleições presidenciais em seu segundo turno que se aproximavam e provocavam discussões e debates calorosos. Alguns tentaram ainda dormir antes de ir para o aeroporto. Prof. Bruno em sua amabilidade fez duas viagens ao aeroporto para poder transladar toda equipe. Um longo e demorado trajeto no início da madrugada. Prof. Moacir foi o de última hora com sua bagagem enriquecida com dezenas de quilos de areia coletadas nas praias do Tapajós para fritar pobres e dispersos zircões no Laboratório de Geologia Isotópica Pará-Iso. Sua altura agigantada com bagagem de alpinista no tuntum criaram um frisson no aeroporto, mas que foi resolvido a contento. Mas todos apresentavam um semblante de cansados, mal dormidos e de ansiedade perante o retorno para casa. Milson despistava a ansiedade que sempre surgia ao viajar de avião. Mas foi. Às 3:50 h no voo Gol G3 1801 partimos para Belém, onde chegamos às 5:10 h. O cansaço era ainda maior como a imagem abaixo capturada ainda no saguão do aeroporto de Val de Cans (Figura 125). Encerrava-se com grande sucesso e com muitas histórias e lembranças, proezas, que foram surgindo no tempo seguinte.

 

Figura 125 – A equipe da viagem pitoresca ao rio-lago Tapajós no desembarque do aeroporto Val de Cans em Belém, no amanhecer do dia 21.10.2018. O cansaço era evidente, estampado no rosto de cada um, mas exaltava felicidade. Apenas ausente o prof. Bruno, que ficou em Santarém, onde reside e trabalha.

 

PALAVRAS FINAIS

A viagem pitoresca ao rio-lago Tapajós transcorreu como planejado, uma viagem dentro da viagem de Henry Walter Bates, sem incidentes, e superou as expectativas de todos seus participantes, deixando marcas indeléveis na memória de cada um, a concluir das inúmeras manifestações e historinhas contadas após a conscientização de que a viagem chegara ao fim, e principalmente pela expressa vontade de se planejar a pitoresca número 2, 3 … etc. O nosso barco Gênesis II foi grandioso e o seu piloto-mestre cuca apimentado Ray com seus dois auxiliares da família, memoráveis.

 

Agradecimentos

Agradeço o empenho dos professores Bruno Figueira e Anderson Braz por sua dedicação para tornar essa viagem pitoresca uma realidade inesquecível, ao se dedicarem a organização da infraestrutura fluvial e terrestre. Ao Sr. Ray, ao lado de seu filho e irmão, que foram mestres da cordialidade e do trabalho por todo o percurso, sempre procurando nos servir da melhor forma possível. Também ao guia de nossa jornada pela bela floresta da Reserva Floresta Nacional do Tapajós (ICMBio Tapajós), o Sr. Raimundo e sua família na Flona Tapajós, que nos receberam de braços abertos e também a muitas pessoas anônimas que direto ou indiretamente nos ajudaram ao longo desta viagem, e em especial a personalidade carismática da senhora Senhorina na vila Boim, e por que não in memoriam a Henry Walter Bates e Henry Ford, nossa admiração pelo grande legado deixado.

 

REFERÊNCIAS

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Costa, M.L., Kern, D.C., Pinto, A.H.E., Souza, R.J.T. 2004. The ceramic artifacts in archaeological black earths (terra preta) from lower Amazon region, Brazil: Mineralogy. Acta. Amazonica, 34 (2): 165-178.

Costa, M.L., Kern, D.C., Pinto, A.H.E., Souza, R.J.T. 2004. The ceramic artifacts in archaeological black earths (terra preta) from lower Amazon region, Brazil: chemistry and geochemical evolution. 34 (3): 375-386.

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Neves, E.W., Petersen, J.B., Bartone, R.N., Silva, C.A. 2003. Historical and Socio-cultural Origins of Amazonian Dark Earth.In: J. Lehmann et al. (eds.). Amazonian Dark Earths: Origin, Properties, Management, Kluwer Academic Publishers. Printed in the Netherlands.

Soares, E.A.A., Wahnfried, I., Dino, R. 2016. Estratigrafia de subsuperfície da sequência sedimentar cretácea neógena das regiões de Manaus e Itacoatiara, Amazônia Central Subsurface stratigraphy of the cretaceous-neogene sedimentary sequence of Manaus and Itacoatiara regions, Central Amazon. Geol. USP, Sér. cient., São Paulo, 16 (1): 22-41. DOI: 10.11606/issn.2316-9095.v16i1p23-41.

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 10.31419/ISSN.2594-942X.v62019i1a6MLC