Ano 12 (2025) – Número 2 – Fulgurites, Gastroliths, Aluminium, Crônicas Artigos
DE BREJOS À VEREDAS – A BURITIZEIRA
10.31419/ISSN.2594-942X.v122025i2a5MENS
Antes que os primeiros raios de sol tocassem a quietude das águas e transformassem o buritizal em um espelho gigante e estilhaçado, nós já estávamos lá. Minha mãe, altiva e forte como as palmeiras que se erguiam imponentes, liderava o caminho. Eu, pequena e curiosa, seguia seus passos largos e coordenados, mas, ora ou outra, os meus pés, indecisos, afundavam no lamaçal turfoso. Um passo em falso, ela dizia, e o pântano te engole inteira, abrindo suas gargantas escuras e famintas. O perigo sussurrava nas sombras, onde raízes grossas mimetizavam serpentes; e troncos retorcidos se confundiam com histórias de peçonhas adormecidas. Mesmo envoltas no breu, aquelas raízes — pneumatóforas — emergiam das águas, alçando seus suspiros aos céus. Uma lição silenciosa sobre resiliência como linguagem primordial. Para durar, precisa se aprender a respirar em qualquer lugar.
Os frutos das palmeiras pendiam em cachos, feito cintilantes brincos a emoldurar pescoços de rainhas. Amadurecidos, desprendiam-se um a um, pérolas ruborescestes, oferendas flutuantes sobre as ambarinas águas mortas, ou quase. Minha mãe, com mãos hábeis e experientes, colhia-os com destreza. Ela por certo, ansiava pelo momento de extrair suas carnes e sumos. Já eu, tomada pela impaciência da infância, não esperava pela sembereba com farinha, nosso “quebra-jejum” habitual. Devorava-os ali mesmo, deixando a polpa doce e cremosa tingir meus dentes de amarelo gema, enquanto o aroma lodoso do brejo se misturava ao perfume fresco dos frutos recém-colhidos.
Olha lá uma palmeira caída, apontava minha mãe. “Está morta, mas ainda há muita vida ali…Tudo aqui tem serventia, até a despedida”, concluía num tom quase filosófico que, sinceramente, nunca entendi de onde vinha. É a ciclagem de nutrientes, mãe, expliquei um dia, já adulta, enquanto cuidávamos do jardim. Quando morre uma palmeira ou qualquer outra planta, não cessa de oferecer. Seu corpo morto, aos poucos decomposto por fungos, insetos e microrganismos, devolve à terra os nutrientes que um dia a sustentaram. Ela levantou os olhos por cima dos óculos e, sem parar de mexer na terra, respondeu: “interessante… Mas todo mundo sabe disso desde que o mundo é mundo. Você acha que o mato precisa de dicionário para fazer o que sempre fez?” Eu ri, desarmada, e voltei a podar as folhas mortas da palmeira ráfis da varanda.
— Por que as folhas não caem logo uma vez? — perguntei a ela certo dia, intrigada com as folhas, antes vibrantes e lustrosas, dedilhadas pelo vento, agora, já desbotadas e capengas, mas ainda agarradas aos troncos.
— Apegam-se ao passado, sentindo nele uma última centelha de vida ou esperam o momento certo de findar um ciclo e iniciar outro…O buritizal, menina, é berço e túmulo e a natureza tem seus mistérios — respondeu novamente com aquele ar filosófico.
Enquanto enchíamos os cestos, ela me alertava sobre os perigos do brejo: se ouvir um assobio, espere pelo segundo, e se ele vier, corra na mesma hora, repetia como um mantra. O terceiro assobio, segundo ela, era sentença certa: vinha sempre acompanhado do bote inescapável da mortal sucuri. Lembro-me de ter perdido as chinelas durante uma dessas fugas desesperadas. Meu irmão, que às vezes ia comigo, quando a minha mãe não podia ir, também correu. Mas já em terra firme, descobri pelas risadas, que quase o fazia rolar no chão, a origem dos três assobios encadeados. Cheguei em casa sem os calçados e com o rosto afogueado mais pela raiva do que pela corrida em si, no encalço do pestinha que continua rindo até hoje. Minha mãe, entre uma bronca e outra, resmungou sobre o desperdício de chinelas e da quantidade irrisória de frutos colhidos. Depois disso, entendi que o melhor era seguir o exemplo dela, que sempre adentrava o brejo, com os pés descalços.
Na maioria das vezes, com os nossos cestos já cheios de buritis, tomávamos o caminho de volta, antes das primeiras baforadas do sol. Na saída do buritizal, palmeiras infantes despontavam – se albergando os terrenos marginais de puro massapê. Minha mãe, com um facão em mãos, avançava em direção a elas e desferindo golpes certeiros, cortava alguns de seus leques. “Estamos precisando de vassouras.” E eu, de bonecas, respondia, já planejando transformar aquelas hastes de miolo macio e tão leve quanto um isopor — o isopor do brejo — em bonecas, casinhas e toda a sorte de mobília necessária para o nosso brincar de comadres. Com minhas irmãs, aquele material simples logo ganharia vida, preenchendo os dias de infância com histórias inventadas. Longe dos brinquedos industrializados, era o buriti que alimentava nosso sonhar, esculpindo uma infância onde a criatividade florescia.
Algumas décadas se passaram desde aqueles dias em que eu me aventurava entre os buritizais da Amazônia maranhense, em busca de alimento para o corpo e alma infantis. E eis que a rainha dos brejos, a majestosa palmeira Mauritia flexuosa, voltou a cruzar meu caminho, ou seria o contrário? Agora, como pesquisadora ávida por decifrar as paisagens tropicais e suas dinâmicas ao longo do tempo geológico, encontrei essas palmeiras sob uma nova perspectiva.
Em vez das manchas multiformes, entremeadas às matas hidromórficas que formavam os soturnos buritizais da minha infância, agora elas se alinhavam em fileiras ao longo de cursos d’água, delineando veredas. O que me transportou de imediato para o universo poético de Guimarães Rosa, em particular, para os cenários de Grande Sertão: Veredas, onde o Cerrado brasileiro, com suas labirínticas trilhas de água e sombra, testemunha os encontros, lutas e dilemas de Riobaldo e Diadorim.
Foi durante o meu doutorado em Geoquímica e Petrologia junto ao Instituto de Geociências da Universidade Federal do Pará, sob a orientação do Prof. Dr. Marcondes Lima da Costa, que esse reencontro ocorreu. O projeto inicial pretendia investigar registros polínicos em lagos da extensa planície savânica localizada no norte do estado de Roraima, buscando reconstituir paisagens de transição entre floresta e savana nessa porção da Amazônia setentrional. Contudo, os lagos, estéreis em sedimentos e, portanto, pobres em histórias, nos conduziram para outros caminhos: as veredas em seu sentido literal.
E dessa forma, na bela e vasta planície do lavrado roraimense, como é localmente conhecido essa unidade morfobotânica, nos deparamos com as veredas de buriti. Ali, suas palmas erguem uma catedral verde ao longo dos igarapés e estreitos filetes d’água; tímidos na estiagem, com o retornar das chuvas, se avolumam em serpentinas líquidas, fluindo impetuosos rumo aos rios maiores. Como veias pulsantes de vida, são oásis de biodiversidade e resistência: sob a sombra dos buritis, araras, tucanos e papagaios nidificam, enquanto tamanduás e muitos outros encontram abrigo. Mesmo diante do fogo, companheiro indesejado da estação seca, as veredas resistem. Como muralhas vivas, protegem as águas nutrizes da savana, e quando os campos ardem em labaredas, elas são as últimas a sucumbir.
Quando vistas do alto, revelam-se como uma pintura viva: traçando veios verdes entremeados à paisagem dourada; drenagens meandrantes que se prolongam a perder de vista. São artérias de vida, mas também de beleza; ao observá-las, é impossível não sentir que a paisagem está viva, respira e guarda a memória dos tempos.
Ao longo de quatro anos percorri o lavrado, compartilhando com as veredas as histórias pelos buritizais da infância, entre semberebas, brinquedos de criança e medos ancestrais. Enquanto, com um trado nas mãos e um microscópico acoplado aos olhos, pedi-lhes que nos contasse suas histórias também, aquelas mais antigas, inscritas em seus ventres. E elas, generosas como sempre, nos revelaram histórias milenares.
Nos sedimentos das veredas estavam registrados os ciclos climáticos, o vai-e-vem das florestas, suas lutas e adaptações ao tempo, umidade, ao fogo e ao homem, as vitórias e as derrotas de um bioma que resiste… Mais do que corredores ecológicos, as veredas de Roraima mostraram-se guardiãs de narrativas imemoriais, elementares para se compreender as transformações daquela paisagem. Em cada passo dado nessas trilhas, sentia o eco do passado e a promessa do futuro, entrelaçados na dança dos buritis e das águas.