DINOSSAUROS NA RODOVIA E NO MUSEU – QUANDO ARTE E CIÊNCIA SE CRUZAM

Ano 11 (2024) – Número 4 – Fulgurites and Sea Glass Causos

10.31419/ISSN.2594-942X.v112024i4a7MENS

 

Maria Ecilene Nunes da Silva

Professora da Universidade Federal do Tocantins, Palmas, Tocantins,

 

Em junho de 2024 tive a honra de participar de uma equipe de pesquisadores e estudantes cuja empreitada consistia em exumar um exemplar de samambaia gigante descoberto na área do Monumento Natural das Árvores Fossilizadas do Estado do Tocantins (Monaf), que por sua vez, localiza-se na região no distrito de Bielândia, município de Filadélfia, ao norte do Estado do Tocantins. Recordo que durante o processo de escavação da árvore fossilizada, a professora Etiene Fabbrin Pires-Oliveira, coordenadora da expedição, explicava a algumas pessoas do grupo que se tratava de um fóssil do Permiano.  “Permiano? ” Indagou um dos ouvintes. “Sim, um período da história geológica da Terra que ocorreu antes do tempo dos dinossauros”. Respondeu a professora. Ah sim! Entendi.  Assentiu o interlocutor.

É notavelmente impressionante como a paleontologia, ciência que se ocupa de estudar os fósseis e vestígios das mais variadas formas de vida pretéritas (peixes, mamíferos, anfíbios, vegetais, invertebrados, fungos, bactérias e outros), revela-se de forma especialmente marcante através dos gigantescos répteis, que com suas impressionantes dimensões e formas, tornaram-se o seu maior símbolo e referência, ao menos para a grande maioria da população.

Bastou o evento expedicionário e toda a atmosfera retrospectiva que o envolveu para que de imediato eu fosse também compelida a escavar minhas próprias memorias jamais fossilizadas. Lembrei da primeira vez que entrei em um museu, a saber, o museu de Geociências (MUGEO) da Universidade Federal do Pará, segurando em uma das mãos o meu projeto de mestrado.  Enquanto aguardava no salão de exposição de rochas e minerais, pela reunião com meu futuro orientador, o professor Marcondes Lima da Costa, me deparei com a curiosa figura cinza esverdeada de um dinossauro que pousava sobre uma mesa disposta em uma das laterais do salão.  Ao me aproximar da peça, observei que se tratava de uma escultura em madeira (cortiça), quadrúpede e carnívoro a julgar pela contorcida serpente cravada entre os dentes. Até hoje não sei definir o tipo, primeiro devido ao emprego de licença poética do artista escultor e segundo, porque não sou nem de longe uma especialista em dinossauros. Em uma conversa recente com o professor Marcondes que além de criador e curador do museu até a sua aposentadoria, foi também o responsável pela aquisição do artefato, hoje conhecido como Dino do Museu, eu lhe perguntei sobre a origem do mesmo. Uma falha minha pois, a essa altura, esta informação já estava publicada nos arquivos online do BOMGEAM (Boletim do Museu de Geociências da Amazônia). Segundo o relato do professor Marcondes, a escultura foi adquirida em setembro de 1999, quando ele visitava a feira de artesanatos, de arte, comida e quinquilharias da Praça da República da cidade de Belém do Pará. O vendedor, natural de Tracuateua, nordeste do estado do Pará era também o artesão, uma pessoa muita atenciosa e vibrante com o seu trabalho de artista.

Agradeci ao professor pelas informações, entretanto, em nada a ele mencionei sobre o fascínio que a peça em questão exercia sobre mim. Especialmente logo nos primeiros tempos de minha passagem pelo museu, quando nas quartas-feiras, orientador e orientandos (mestrandos, doutorandos e graduandos) se reuniam sob o olhar emblemático do dinossauro, o qual testemunhou por anos a fio o desenrolar dos planos, projetos e comemorações do grupo. Por diversas vezes me surpreendi contemplando-o, consciente de que sua imagem me remetia a um outro dinossauro. Um dinossauro que havia atravessado meu caminho muitos anos atrás, quando eu entendia do mundo das bonecas e das brincadeiras de roda, mas ignorava totalmente o universo das rochas, da estratigrafia e das eras e períodos geológicos, inclusive o Jurássico. Dessa vez, o dinossauro aparecia em uma pintura. Tratava-se do “dinossauro na rodovia” (do original em alemão Dinosaurier auf der Autobahn). Esse quadro foi pintado em 1980 pelo artista suíço Giuseppe Reichmuth para atender uma encomenda do amigo Albert Ernst que era dono de uma galeria de arte em Zurique. Ele pretendia expor a obra na exposição “Green 80”, na cidade de Basileia sob sua curadoria e queria uma obra inédita e pitoresca de Reichmuth. O quadro (tela original medindo 90 x 120 cm) que foi pintado em estilo hiper-realista, mostra um Brontossauro atravessando majestoso uma rodovia nas proximidades de Basileia, enquanto os veículos tombam, espatifando-se ao longo da mesma. As cópias dessa pintura se tornaram uma febre no Brasil e em especial na região Nordeste nos anos 90. No estado do Maranhão, por exemplo, eram vendidas nas feiras populares ou pelos caixeiros viajantes que percorriam longos caminhos até os mais remotos lugarejos, carregando consigo além de quadros, redes, espelhos, pratos, panelas etc. Nas paredes de taipa ou alvenaria sem reboco, o dinossauro na rodovia aprisionava olhares ostentando sua enigmática e assombrosa beleza ao lado da última ceia de Leonardo da Vinci e de outras imagens sacras barrocas ou renascentistas. Na verdade, eu não fazia a menor ideia de que animal era aquele, pois eu nunca havia visto nada parecido em nenhum outro lugar, nem tampouco minha vizinha que recentemente adquirira o quadro, sabia dizê-lo.

O dinossauro na rodovia fez tanto sucesso que ganhou três versões brasileiras também muito inusitadas: dinossauro na praia, dinossauro fórmula 1 e dinossauro no outdoor. As pinturas brasileiras são de autoria do pintor carioca Valentim Keppt e foram encomendadas pela estamparia paulistana Martinelli, fundada em 1935, que pretendia diversificar sua produção, até então voltada para temas religiosos, como aqueles ilustrados nos folhetos distribuídos pelo grupo religioso autointitulado, as testemunhas de Jeová.

Dessa forma, cabe a questão: quantos paleontólogos, geólogos, biólogos e/ou entusiastas do mundo Jurássico não encontraram nas obras de arte o impulso inicial para suas paixões? A arte possui um impacto verdadeiramente impressionante. Através da pintura, música, escultura, literatura, teatro, dança e outras formas, algumas obras são capazes de nos inspirar e motivar, enquanto outras nos levam a refletir sobre a complexidade da existência humana. Os exemplos vão muito além de um dinossauro cruzando uma rodovia ou um outro dando as boas-vindas aos visitantes de um museu. Em muitos casos, as obras de arte penetram tão profundamente na nossa subjetividade que se tornam memoráveis para toda a vida. A arte é indubitavelmente uma força vital que molda e movimenta a nossa vida, inspirando descobertas, moldando culturas e enriquecendo a nossa experiência humana.

Figura 1 – Cenas do processo de escavação paleontológica de pteridófita arborescente por equipe de pesquisadores e estudantes da Universidade Federal do Tocantins, do Museu Nacional (UFRJ) e representantes IPHAN e do Naturatins, durante expedição científica ao Monumento Natural das Árvores Fossilizadas do Estado do Tocantins (Monaf), Filadélfia – TO. A) antes do início da escavação, com a árvore ainda inumada e destaque para a professora Etiene Fabbrin na coordenação dos trabalhos; B) início da escavação; C) pteridófita completamente exumada e cercada por parte da equipe executora.

 

Figura 2 – Dinossauro na Rodovia (Dinosaurier auf der Autobahn) do artista suíço Giuseppe Reichmuth.

 

Figura 3 – Dino do Museu de Geociências da Amazônia da UFPA (MUGEO).