02 – O USO DE GEOTINTAS NA PINTURA – A EXPERIÊNCIA DO ATELIÊ TERRA & TELA

Ano 11 (2024) – Número 4 – Fulgurites and Sea Glass Artigos

10.31419/ISSN.2594-942X.v112024i4a2MENS

 

Universidade Federal do Tocantins, Email: mariaecilene@yahoo.com.br

Recebido em 07.09.2024; Revisado e aceito em 10.09.2024.

ABSTRACT

Historically, natural pigments have been central to artistic expression, from prehistoric cave paintings to techniques employed by ancient and medieval civilizations. Recently, there has been renewed interest in these materials for their unique aesthetic and eco-friendly qualities. This study investigates the use of geotints, natural pigments derived from soils and sediments, in contemporary art through the experience of Terra & Tela studio. The research focuses on the process of creating geotints from soil and sediments samples collected in Tocantins state, Brazil, a region known for its rich geodiversity. The research details the process of geotint production, from material collection to application on canvas, and discusses the artistic and environmental implications of this practice. The project integrated geotints into artistic practice through exhibitions and workshops that highlighted their unique textures and colors. Key findings show that geotints effectively merge scientific concepts with art. Workshops, where participants prepared and used these pigments, demonstrated the approach’s educational value. By linking art with science, geotints provided a hands-on understanding of soil properties and geological processes, enriching both artistic creativity and scientific literacy. This study emphasizes art’s role in bridging scientific knowledge with creative expression.

 

INTRODUÇÃO

A prática de utilizar pigmentos naturais na pintura remonta aos primórdios da humanidade. Desde as pinturas rupestres que empregavam óxidos e hidróxidos de ferro para respectivas tonalidades vermelhas e amarelas e de manganês e carvão para tons cinzas a preto para criar imagens duradouras nas cavernas, até as técnicas de pigmentação sofisticadas desenvolvidas nas civilizações egípcia e romana, a utilização de materiais naturais minerais e vegetais têm sido uma constante na expressão artística. Estes pigmentos, derivados de minerais, plantas e até animais foram fundamentais não apenas pela variedade de cores que proporcionavam, mas também pelo fato de estarem disponíveis, ainda não se ter o domínio de processos industriais, e assim, por necessidade forjaram uma profunda conexão com o ambiente natural.

Nas últimas décadas, tem ocorrido um resgate desse conhecimento ancestral, por conta do apelo ecológico, com a revalorização dos pigmentos naturais no contexto da arte. Artistas contemporâneos têm explorado o uso de materiais orgânicos e inorgânicos para criar tintas e revisitar essas práticas, refletindo uma crescente inquietação sobre a sustentabilidade e a busca por autenticidade nos processos criativos. Nesse contexto, destaca-se a prática de utilizar solos e sedimentos como matéria-prima para a produção de tintas, as chamadas geotintas, termo de autoria incerta, mas que tem se popularizado entre artistas e educadores que buscam nos materiais provenientes da natureza, um ponto de encontro entre ciência e arte.

Nesse contexto, o presente estudo visa explorar essa prática a partir da experiência do Ateliê Terra & Tela (ATT), cujo escopo artístico é inteiramente voltado para a produção e uso de tintas (sem processamento industrial) a partir dos pigmentos extraídos de solos e sedimentos encontrados no estado do Tocantins, que com sua rica biodiversidade e paisagens exuberantes, oferece uma ampla variedade de materiais regolíticos (solos, sedimentos, crostas). O ATT explora essa geodiversidade, utilizando solos e sedimentos do Cerrado, da Amazônia para criar uma paleta de cores que reflete a riqueza natural da região. Nessa perspectiva, o ATT propõe uma integração entre arte e geografia, utilizando a geotinta não apenas como uma alternativa sustentável às tintas industriais, mas também como uma possibilidade de (re) conexão com o ambiente local, uma ferramenta para promover o acesso ao conhecimento científico e ambiental e, por conseguinte fortalecer a trama entre arte, natureza e comunidade.  No decorrer desse estudo, será detalhado o processo de produção da geotinta, desde a coleta dos materiais até a aplicação em tela, e discutido as implicações artísticas e ambientais dessa prática.

 

O ESTADO DA ARTE EM UM VISLUMBRE

Usos da terra

Os solos e sedimentos, que constituem em geral a camada superficial da crosta terrestre, são fundamentais para a manutenção da vida no planeta. Composto por minerais, matéria orgânica, água e ar, eles desempenham diversas funções essenciais para os ecossistemas e para a sociedade. Eles atuam como um meio de crescimento para as plantas, fornecendo água, nutrientes e suporte físico para as raízes. Além disso, os solos e sedimentos são um filtro natural que purifica a água, regulam o ciclo hidrológico, reciclam a matéria orgânica e ainda abrigam uma rica biodiversidade, sendo habitat para inúmeros organismos, desde microrganismos até animais maiores. A importância dos solos e sedimentos é inegável, sendo um recurso finito e não renovável em escala humana (Lepsch, 2002; Brady e Weil, 2013).

Além desses usos e funções mais conhecidos, os solos e os sedimentos encontram um lugar especial na arte. Pelo fato de exibir um verdadeiro mosaico de cores, texturas e estruturas, tem inspirado a criatividade humana há milênios. A cerâmica, uma das mais antigas formas de expressão artística, celebra essa conexão profunda entre o homem e a natureza, transformando o barro (solo ou sedimento argiloso) em obras de arte que transcendem o utilitarismo.  A confecção de artefatos de barro é um processo ancestral que envolve a seleção cuidadosa da argila, a modelagem manual e a queima em fornos. Essa prática, além de produzir objetos belos e funcionais, fortalece os laços comunitários e preserva tradições culturais (Silva, 2007, Galizoni et al 2013). No Brasil, em muitas regiões, a arte ceramista incorporou processos industriais, todavia, em outros como em Caruaru (Estado de Pernambuco) e no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais, há exemplos emblemáticos dessa rica tradição, onde comunidades inteiras dedicam-se à produção de cerâmica artesanal, embora voltada para o turismo, raramente para uso próprio, exceto ornamentação (Fig.1)

Mas a arte com a terra vai além da cerâmica. A pintura com a terra (solos e sedimentos) oferece uma outra perspectiva para a expressão artística. Ao utilizar os pigmentos extraídos da terra como matéria-prima para a pintura, os artistas celebram a sua diversidade de cores e texturas e com isso resgatam técnicas ancestrais e estabelecem um diálogo com a história e com a natureza.

Figura 1. Exemplos de arte confeccionada com argila em Caruaru – PE (à direita) e no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais (à esquerda). Fontes: Instituto Internacional de Arte Naif e Galizoni et al 2013 respectivamente.

 

Geotinta: releitura contemporânea de uma pratica ancestral

A geotinta também chamada de tinta ecológica é preparada a partir da extração dos pigmentos da terra (solos e sedimentos). O processo de produção da geotinta envolve a coleta da terra, sua secagem, e a moagem, seguidos pela mistura com aglutinantes naturais como a goma-arábica ou industriais como cola branca PVA, criando-se uma tinta estável e durável como demonstram os trabalhos de Carvalho et al (2007), desenvolvidos no âmbito do Programa Cores da Terra, no Departamento de Solos da Universidade de Viçosa (MG). A técnica de preparação é decisiva para garantir a uniformidade e a intensidade das cores (Vital et al 2018).

A geotinta pode permitir uma paleta diversificada de tonalidades, que vão desde tons terrosos (amarelos, alaranjados, vermelhos, marrons) profundos até nuances mais sutis como brancos e rosados, dependendo da mineralogia e de seus aspectos microtexturais, os quais dependem das condições ambientais e de formação e de ocorrência do material. A textura e a aplicação das geotinta podem criar efeitos visuais diversos e distintos, proporcionando uma conexão direta com o ambiente e destacando a riqueza natural dos pigmentos. A preparação da geotinta é relativamente simples e acessível, o que torna sua aplicação viável tanto em ambientes artísticos quanto educacionais, podendo ser aplicada sobre diversas superfícies, como papel, tecido, madeira, cimentados, tijolos, cerâmicas entre outros e com boa durabilidade (Carvalho et al 2007).

Uma jornada cromática: a história dos pigmentos minerais na Arte

A trajetória dos pigmentos naturais no vasto e colorido leque da história da arte é uma narrativa tão antiga quanto a própria humanidade. Desde os primeiros traços nas paredes das cavernas, quando retratavam as primeiras manifestações criativas dos povos ancestrais até hoje quando continuam a materializar a inspiração dos artistas, esses materiais extraídos do seio da terra têm sido muito mais que simples cores na paleta dos artistas; eles são testemunhas e coautores da evolução humana. Quer aportados na geologia ou na biologia, os pigmentos ocupam um espaço onde arte e natureza se encontram, refletindo a capacidade humana de transformar matérias-primas em símbolos de beleza, narrativas e semântica.

Os pigmentos naturais, classificados por sua origem, dividem-se em três categorias principais: mineral, vegetal e animal (Pedrosa, 2009).  No entanto, pigmentos, em sua definição mais restrita, são partículas sólidas e insolúveis, de origem mineral, que não se dissolvem no meio em que são aplicados. Essas partículas extremamente finas são dispersas em um aglutinante (como água ou óleo) para formar tintas. Quando de origem orgânica, os pigmentos são na verdade corantes, que por sua vez, são substâncias solúveis, e, portanto, se dissolvem no meio em que são aplicados. Por este motivo, são amplamente mais utilizados no tingimento de tecidos, pois penetram nas fibras e as coram de forma uniforme (Cruz, 2005). Embora alguns corantes também sejam utilizados em pintura, eles são geralmente fixados a um pigmento branco e inerte (como carbonato de cálcio), formando uma laca. Esses corantes são extraídos de flores, frutos, folhas e raízes, a exemplo do famoso azul índigo extraído da planta Indigofera tinctoria.  Quanto a origem animal, são em geral, menos comuns e incluem a púrpura tiria (extraída de moluscos) e o vermelho carmim extraído de um inseto conhecido como cochonilha. Neste breve apanhado, se tratará apenas de pigmentos naturais, ou seja, de origem geológica (solo, mineral e rocha) e sua importância ao longo da história da arte.

Os pigmentos naturais são extraídos de rochas, minerais, solos e sedimentos. O ocre cujas cores podem variar de amarelo, vermelho a marrom, refletindo a presença de óxidos e hidróxidos de ferro, especialmente hematita (Fe2O3) e goethita (FeOOH); o azul ultramarino  proveniente do lápis-lazúli, uma rocha metamórfica formada por vários minerais incluindo a lazurita (Na,Ca)8 (AlSiO4)6 (S,SO4,Cl)2), responsável pela natureza pigmentante; o azul e o verde dos respectivos carbonatos de cobre azurita (Cu3 (CO3)2 (OH)2 e  malaquita (CU2CO3 (OH)2) e o vermelho do cinábrio (HgS) representam os mais importantes dentre os diversos pigmentos de origem mineral utilizados ao longo da história, conforme Cruz (2005) (Fig.2).

Figura 2 – Principais fontes de pigmentos ao longo da história da humanidade: A) lápis lazuli; B) malaquita; C) azurita ocorrendo junto a malaquita; D) cinábrio; E) solo rico em oxi-hidróxido de ferro, especialmente goethita; F) solo rico em óxido de ferro, com destaque para hematita. (Fontes: www.johnbettsfine-minerals.com (A e C); Materiais Didáticos, IGc-USP (B); Albert Russ collection (D); acervo pessoal (E-F).

 

A descoberta das cores da terra foi um marco na história da humanidade que sempre foi bem servida com os tons marrons, vermelhos e amarelos. Os povos ancestrais ao transformarem terras e rochas em pigmentos, criaram as primeiras pinturas e iniciaram uma jornada de exploração e experimentação artística, cujos registros estão espalhados por diversas culturas ao redor do mundo, desde as famosas pinturas rupestres de Lascaux, na França, até os registros da Serra da Capivara no estado brasileiro do Piauí (Fig. 3). Extraídos diretamente do substrato geológico, esses pigmentos permitiram que os primeiros humanos expressassem suas cosmovisões registrando suas crenças, rituais e a própria interação com o meio ambiente.

Figura 3 – Registros de algumas das primeiras utilizações de pigmentos minerais nas pinturas rupestres: à esquerda, as cavernas de Lascaux, na França, e à direita, a Serra da Capivara, no Piauí, Brasil. Fontes: BBC; IPHAN.

 

Com a evolução das civilizações, a paleta de cores naturais se expandiu e se sofisticou. No Antigo Egito os egípcios desenvolveram um tom de azul claro obtido a partir de uma mistura de sílica, cálcio e cobre que ficou conhecido como azul egípcio, um dos primeiros pigmentos sintéticos da história.  Os tons terrosos obtidos dos materiais geológicos ornamentavam as paredes dos túmulos e sarcófagos e murais, assim como o branco obtido a partir do mineral gipsita (CaSO4.2H2O), o preto da pirolusita (MnO2), o verde e o azul obtidos respectivamente da malaquita e azurita (Gomes et al, 2014). Esses pigmentos minerais permitiram aos egípcios desenvolverem uma sofisticada linguagem visual, onde as cores transcendiam a mera estética. Cada cor era carregada de simbolismo, revelando as crenças e os valores de uma civilização fascinada pela vida, pela morte e pelo além.

Os romanos, por sua vez, dominaram a arte da pintura mural, onde registravam eventos históricos, mitológicos ou do cotidiano. As cidades romanas de Pompéia e Herculano, tragicamente soterradas pelas cinzas da erupção do Vesúvio no ano de 79 d.C., proporcionaram um vislumbre único sobre a vida e a arte do mundo romano. Entre os tesouros cobertos e preservados pelas cinzas vulcânicas, destacam-se os vibrantes afrescos que adornavam as paredes de casas, templos e outros edifícios. Nesses murais   destacam-se especialmente os tons terrosos de minerais como hematita e/ou goethita, o vermelhão do cinábrio e o branco obtido do pó da calcita (CaCO3). As terras verdes, um grupo de argilominerais composto por celadonita, glauconita e clorita, com fórmulas químicas como K(Mg,Fe)(Fe,Al)Si₄O₁₀(OH)₂, (K;Na)(Fe3+;Al;Mg)2(Si; Al)4O10(OH)2 e (Mg,Al,Fe)3(Si,Al)4O10(OH)2.(Mg,Al,Fe)3 (OH)6, respectivamente, eram especialmente adequadas à pintura a fresco, técnica que consiste em aplicar pigmentos diretamente sobre uma superfície de gesso ou argamassa ainda úmida, que aos secarem se fundem à parede, criando uma pintura mural durável e integrada à arquitetura. Essa foi o tipo de pintura predominante na arte romana, até onde se conhece.

Os pigmentos naturais se estenderam até a Idade Média como papel fundamental na produção artística, especialmente na criação de manuscritos iluminados, afrescos e ícones religiosos. A paleta de cores disponível aos artistas medievais era limitada pelos recursos naturais acessíveis e entre os pigmentos minerais o mais notável foi o azul ultramarino, derivado da já mencionada rocha lapis-lazuli, proveniente do atual Afeganistão. Devido à sua raridade, extração laboriosa e custo elevado, o ultramarino era frequentemente reservado para a representação de figuras sagradas, simbolizando suas correlatas importâncias, a exemplo do manto da Virgem Maria que até então era pintado de branco ou vermelho (Gage, 1993).  Com a ascensão do Renascimento e Barroco, a demanda por azul ultramarino cresceu, impulsionando a busca por novas fontes e técnicas. Apesar do desenvolvimento de alternativas industriais, como o azul da Prússia, o azul ultramarino manteve seu prestígio e significado simbólico A azul da azurita apesar de compor as paletas de alguns artistas, não era muito apreciado, devido sua tonalidade mais opaca e principalmente sua instabilidade química, alterando-se para tons esverdeados, ao converter-se em malaquita.

A Revolução Industrial introduziu os pigmentos industriais, marcando uma nova era na paleta dos artistas. No entanto, a beleza atemporal dos pigmentos naturais, especialmente os tons terrosos extraídos de solos e sedimentos, continuam a fascinar artistas, restauradores e historiadores da arte que redescobrem a riqueza cromática e a profundidade histórica desses pigmentos naturais, estabelecendo um diálogo entre passado e presente.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

Coleta e Seleção de Solos e Sedimentos (terra)

No processo de produção de geotinta, a primeira etapa consiste na identificação e coleta de solos e sedimentos com potencial para fornecer cores diversas. Carvalho et al. (2007) destacam a importância de selecionar materiais ricos em argilas, onde concentra-se o pigmento. As telas apresentadas neste trabalho foram pintadas como solos e sedimentos coletados nos arredores dos municípios tocantinenses de Palmas (amostras 1,9,11 e 12), Porto Nacional (amostras 3, 4,5,6, 7 e 8) e Filadélfia (amostras 2 e 10) (Fig.4).

Figura 4 – Paleta de cores de solos e sedimentos coletados e classificados segundo a carta de Munsell. 1 – 5R 7/1; 2 – 10YR 8/1; 3 – 10YR 8/4; 4 – 10YR 6/8; 5 – 2.5Y 5/4; 6 – 2.5Y 6/1; 7 – 7.5YR 4/1; 8 – 10YR 5/6; 9 – 7.5YR 7/6; 10 – 7.5R 7/3; 11 – 5YR 5/8; 12 – 10R 4/8.

 

Produção das Tintas

Neste trabalho os procedimentos adotados seguiram as instruções observadas em Carvalho et al (2007). Dessa forma, após a coleta, os materiais foram secos à temperatura ambiente, desagregados e triturados em moedor de rocha (granito) e em seguida peneirados para se obter apenas a parte fina (silte e argila). Esse processamento é crucial para garantir que o pigmento seja homogêneo e de fácil aplicação na formulação da geotinta, pois a granulometria das partículas influencia na textura e na qualidade da tinta final. A fração fina ou pigmento foi então misturada com água e cola branca PVA.  A receita base adotada na confecção das tintas foi a mesma utilizada pelo Projeto Cores da Terra. (Carvalho et al, 2007): 100 gramas de terra peneirada são misturadas com 100 ml água limpa e com 50 g de cola branca PVA. A consistência da tinta pode ser ajustada conforme a técnica de aplicação (pincel, espátula etc.). Dessa forma, adiciona-se mais aglutinante diluído em água (na proporção de 1 parte de água para ½ de cola), para uma tinta mais fluida ou mais pigmentos para uma tinta mais densa. Na figura 5 são apresentadas algumas etapas do processo de produção da geotinta. Obtidas as geotintas, as mesmas foram aplicadas sobre tela de algodão utilizando-se pincéis e espátulas próprios para a pintura. O processo de secagem ocorreu à temperatura ambiente, e o tempo necessário variou de acordo com a espessura da camada de tinta e das condições ambientais (temperatura e umidade relativa do ar) locais.

Figura 5 – Etapas da preparação das geotintas: A) exemplo de pontos de coleta; B) desagregação dos torrões; C) peneiramento a seco para obtenção da fração fina; C) mistura dos componentes (pigmento, água e cola branca) e D) aplicação sob tela.

 

A EXPERIÊNCIA DO ATELIÊ TERRA & TELA (ATT)

O surgimento do ATT e seu propósito

O ATT surgiu como fruto dos trabalhos iniciados em 2011 quando assumi a coordenação do Laboratório de Solos e Biogeografia, da Universidade Federal do Tocantins, situado no Campus de Porto Nacional, onde ministrei desde então a disciplina Solos Tropicais e Uso da Terra, substituída em 2014 pela disciplina Pedologia, de escopo mais abrangente.

Durante os anos em que ministrei essas disciplinas (2011-2023), desenvolvi e implementei oficinas no referido laboratório e em sala de aula que envolviam a análise das propriedades físicas dos solos.  Uma das atividades mais instigantes foi a oficina de pintura artística, na qual os estudantes preparavam as tintas a partir de solos e as aplicavam sobre diversas superfícies como papelão, cartolina e papel comum (Fig. 6). Ao experimentarem com diferentes tipos de terra e técnicas de pintura, os estudantes não apenas identificavam as características físicas dos solos como cores e texturas, mas também desenvolviam habilidades artísticas e um olhar mais atento para a paisagem, seus componentes  e processos, como por exemplo, a natureza mineralógica e proveniência geológica dos materiais utilizados, os processos intempéricos, erosivos e  pedogenéticos envolvidos na formação e dinâmica desses regolitos, bem como a importância da interação entre fatores como  clima, relevo, organismos e tempo no contexto funcional da paisagem.

A partir dessas experiências buscou-se ampliar o conhecimento sobre o uso de geotinta na arte, experimentar novas técnicas de produção e diversificar as superfícies de aplicações. Alguns projetos como aqueles realizados pela professora Adriana de Fátima Meira Vital e seus colaboradores na Universidade Federal de Campina Grande (estado da Paraíba), foram um divisor de águas para meu mergulho subsequente nesse mundo da arte com geotintas.  A professora Adriana tem explorado o uso de geotintas como uma forma de integrar arte, educação e sustentabilidade. Ela orienta projetos que investigam a relação entre os solos na região do estado da Paraíba e a produção de arte, destacando a relevância ecológica e cultural dessa prática. Suas iniciativas contribuem para a disseminação do conhecimento sobre a importância da preservação dos solos e do uso de recursos naturais de maneira consciente.

Figura 6 – Cenas de oficina realizada com alunos de graduação do curso de Licenciatura em Geografia.

 

Atividades, Relatos e Percepções

No mês de junho de 2024, por ocasião da realização do Sala Aberta, um evento que ocorre semestralmente promovido pelo curso de Licenciatura em Teatro da UFT (campus de Palmas, estado do Tocantins), o ATT se apresentou pela primeira vez através de uma pequena exposição de telas pintadas com geotinta no hall principal do prédio do referido curso (Fig. 7).  Essa exposição composta por telas de tamanhos variados foi recebida com um entusiasmo por alunos, professores e demais visitantes. O evento proporcionou uma valiosa oportunidade para apresentar a estética e as possibilidades oferecidas pelas geotintas, resultando em um reconhecimento positivo da iniciativa.

A singularidade das obras, que utilizaram pigmentos naturais extraídos de solos e sedimentos, despertou interesse e curiosidade entre os participantes. As texturas e tonalidades criadas com as geotintas foram notadas e apreciadas por sua originalidade, proporcionando uma nova perspectiva sobre como materiais naturais podem influenciar a criação artística.

Durante o evento, o ateliê também ofereceu uma oficina que permitiu aos participantes a prepararem as geotintas a partir dos materiais disponibilizados e criarem a própria pintura. A recepção desta atividade foi bastante positiva, com muitos participantes demonstrando interesse em experimentar a técnica e explorar as possibilidades criativas oferecidas pelos pigmentos minerais. Por fim, essa experiência mostrou como a arte pode servir como um meio eficaz para promover a conscientização sobre a preservação ambiental e engajar o público em práticas mais sustentáveis.

Figura 7 – Algumas das telas mostradas na exposição do evento Sala Aberta 2024.1. Série: Experimentações, 2024. Técnica pictórica: geotinta sobre tela. Arte e imagens da autora.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Ateliê Terra & Tela, nascido da intersecção entre arte e geologia (solos, sedimentos e mesmo rochas), prevê e abraça o desafio de expandir suas atividades, ampliando o alcance e o impacto desse projeto. Para isso, está desenvolvendo um plano estratégico que inclui o levantamento das principais ocorrências de materiais geológicos como fonte potencial para pigmentos, ampliar o acervo de novos materiais, a realização de exposições, o estabelecimento de parcerias e criar também o ATT itinerante, com o objetivo de levar a arte e educação ambiental a um público mais amplo.

Acredita-se que a arte é uma poderosa ferramenta de expressão e transformação social, capaz de refletir tanto as nuances da experiência individual quanto as complexidades da vida coletiva. Nesse contexto, o Ateliê Terra & Tela busca promover uma intersecção entre práticas artísticas e investigação científica, ampliando a compreensão da natureza e sua intrínseca relação com a criação humana.

 

REFERÊNCIAS

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