06 – UMA DAS FRUTAS DE CEMITÉRIOS, A MANGA

Ano 11 (2024) - Número 2 - Crônicas Artigos

10.31419/ISSN.2594-942X.v112024i2a6MENS

 

Maria Ecilene Nunes da Silva

Universidade Federal do Tocantins

mariaecilene@yahoo.om.br

 

No caminho entre a nossa casa e o riacho por onde precisávamos passar diariamente em busca de água para as necessidades domésticas, havia um pequeno cemitério. Eu me escondia lá às vezes quando os meninos da vizinhança corriam atrás de mim para me bater ou coisa pior. Enquanto esperava meus algozes se cansarem e desistirem da caça, aproveitava para comer os frutos das mangueiras que sombreavam os túmulos. As árvores frondosas ostentavam galhos tão carregados que pendiam ao chão com o peso das mangas graúdas. Eram de fato muito maiores que aquelas geralmente encontradas pelas redondezas. O cheiro denso e pretensioso, um convite irrecusável ao desfrute e a doçura e suculência, uma afronta aos residentes do local.  Nem precisava de vara, com as mãos alcançava fácil umas 3 ou 4, sentava-me no chão rente ao tronco de uma dessas árvores ou do lado de alguma cruz, e com as pernas abertas e espichadas, afundava o rosto na fruta sem me importar com o caldo amarelo que escoava fluído feito rio, por entre os dedos. De barriga cheia e rosto lambrecado até os fiapos desgrenhados dos cabelos, levantava-me e caminhava por entre as sepulturas. O chão ao redor, uma serrapilheira sagrada pontilhada de incontáveis mangas caídas, intactas ou parcialmente decompostas. Por que será que ninguém cata aqui? Indagava.  Nos outros pés de manga conhecidos na região, os frutos não bastavam a quem queria.  Mas ali não catavam de jeito nenhum e não é que soubesse dos riscos de contaminação dos solos de cemitérios ou pensassem que consumir frutos adubados com fertilizantes humanos fosse má ideia. Não, de fato sequer imaginavam e eu tampouco.  O motivo era outro: tinham medo das almas dos mortos – eu dos vivos. O que de mal esses pobres coitados poderiam me fazer?  Uma calmaria só! O silêncio atravessado apenas pelo zumbir dos insetos sobrevoando o tapete amarelo ou pelo sibilar triste do vento que balançava respeitoso a copa das árvores. Não via o tempo passar, ficaria toda uma vida nesse lugar. Vixe!  Já é quase noite e mãe deve estar preocupada – me espantava sempre. Mas antes de partir, dava mais uma vistoriada nas moradias. Nas raras e simplórias lápides e em algumas cruzes pintadas de branco e fincadas sobre murundus de terra, constava rabiscos informando a data do nascer e do morrer. Eu fazia as contas, um hábito que mantenho até hoje quando visito algum cemitério; se fosse criança, eu as pranteava inconsolável, como se as conhecesse de perto.  É que eu tinha muita pena do infortúnio de tão pouca vida. A bem da verdade, não havia muitos túmulos de crianças. E, não é que elas não morressem, morriam sim, feito moscas, e por isso não se jogava fora caixotes de papelão, já que, a qualquer momento alguém da parentela ou vizinhança haveria de precisar para abrigar os corpos minúsculos dos anjinhos, geralmente enterrados nos quintais das casas. Muitas morriam ainda no ventre, outras durante complicações dos partos realizados sem qualquer assistência médica. As comadres parteiras, nossas “mães de pegação” de quem regularmente pedíamos a benção, faziam o que podiam, mas aqui ou acolá o caso estaria para além dos conhecimentos delas e com sorte restasse a mãe. Algumas crianças morriam antes de completar dois anos de vida. Uma febre repentina, qualquer disenteria, o implacável sarampo, a “tosse braba” (coqueluche) ou lombrigas; qualquer coisa garantia o óbito inocente. Lembro-me de presenciar vários enterros infantis no quintal da minha avó e de levar uma surra após um deles. Eu deveria ter no máximo uns 5 anos e observava de longe o ritual; então, quando o finalizaram, minhas tias, mãe e avó se dispersaram, voltando a seus afazeres. Minha avó, no entanto, retornou ao quintal, para buscar água no poço situado quase ao lado dos pequenos túmulos e me flagrou no exato momento em que, empunhando uma pá, exumava a natimorta prima, Maria Quitéria.  Ela gritou, e antes que eu pudesse correr, me agarrou pelo braço e me fez dançar ao canto ritmado das chineladas. Será que a senhora se lembra disso vovó? Acho que sim.

Quando nos mudamos para a área urbana do município em que morávamos, estranhei bastante a disposição do cemitério encravado no meio da cidade e não afastado, marcando a entrada ou proximidade de algum povoado. Nesse não tinha pomar, apenas arvoretas e arbustos cuja verdura luxuriante das folhas orgulhava-se de suas inflorescências que cresciam num festival vibrante e multicor, indolentes à morte plantada em seu substrato. Planta de cemitério é puro viço! E com toda razão.  A fertilidade dos necrossolos é aumentada devido o aporte de matéria orgânica oriundo da decomposição dos corpos humanos. Entre outros nutrientes destacam-se o nitrogênio, o potássio e o fósforo, compondo o afamado NPK, só que de origem antropogênica. Enquanto os primeiros estão presentes nos tecidos, o fósforo é resultante da alteração do biomineral apatita, Ca5(PO4)3 (OH, F, Cl), constituinte principal dos nossos ossos e dentes. E assim, nossos corpos desfeitos do seu vigor tecem pacientes a mortalha fecunda que traveste o chão e nutre a mãe terra.

Na mesma rua do cemitério, uma lojinha de caixões de tamanhos variados e cores branca, azul ou âmbar, com detalhes em dourado, mal agourava os vivos que, por vezes, eram vistos atravessando para o outro lado da rua, evitando assim, pisar em sua calçada mórbida. Pobre da Maria do Socorro, não teve direito sequer a um desses mais simplesinhos, lamentava minha avó sobre a filha que morrera de parto e fora sepultada, envolta apenas em uma rede de algodão, colocada na cova em contato direto com o solo. Pois é vovó, ao menos ela cumpriu obediente a divina lei: “tu és pó e ao pó voltarás”. Nem lhe conto que hoje em dia “voltar ao pó” se tornou uma prática não sustentável e ecologicamente incorreta, portanto, não mais recomendada.

Segundo os estudiosos do assunto, a decomposição dos corpos gera contaminação dos solos e lençóis freáticos pelo necrochorume (solução composta por água, sais minerais e substâncias orgânicas: cadaverina e putrescina), e dessa forma, recomendam como uma das saídas, o “sepultamento” nos cemitérios verticais. E nesse sentido, o mercado funerário tem aderido ao negócio. As necrópoles verticais que parecem mais edifícios, estão virando moda.  No Brasil tem já cerca de dez cemitérios verticais e um deles está situado na cidade de Santos (SP), onde está “enterrado” o craque do futebol, Pelé. Se por um lado, a estruturação verticalizada dos cemitérios em prédios otimiza o espaço e promove a sustentabilidade, por outro, devido às questões religiosas e culturais, a demanda pelos atuais cemitérios horizontais, ainda irá permanecer por longo e indeterminado tempo. Eu acho vovó, que a senhora detestaria passar a eternidade em uma gaveta.

Nos cemitérios verticais, os corpos são colocados dentro de gavetas empilhadas, sem contato com o solo. Acoplado a essas gavetas há um sistema de canos tubulação que coleta os produtos líquidos e gasosos gerados pela decomposição dos corpos. Daí são devidamente tratados e descartados no ambiente de modo seguro. Esse sistema também encurta o processo de decomposição e não gera mal cheiro nem envolve micro-organismos…bem, mas chega desse assunto, mórbido não? É apenas o meu lado humano, cheio de dogmas e temores duelando com meu lado cientista sobre a finitude da vida e os aspectos práticos da morte.

Mas só para finalizar, é importante saber que tanto no caso dos cemitérios verticais, quanto no dos cemitérios tradicionais, há uma série de recomendações por parte do Conselho Nacional do Meio Ambiente (resolução nº 335/2003).  Com respeito a construção de novos cemitérios, as recomendações são, entre outras, evitar solos porosos, solos com lençol freático muito próximo a superfície e ainda para auxiliar na retenção dos contaminantes do necrochorume, sugere-se também o plantio de árvores que retenham micro-organismos e consumam o excesso de matéria orgânica que chega ao meio. Eu indicaria as mangueiras.

Figura 1 – uma pequena amostra do mineral apatita, este de origem inorgânica, visualmente muito distinto daquela dos ossos. Acervo pessoal.

 

Figura 2 – imagem ilustrativa de um cemitério arborizado com mangueiras em plena frutificação, elaborada por Inteligência Artificial (IA) sob sugestão da autora.