04 – NA SINA COM A ALEMANHA: O CONGLOMERADO SOPA-BRUMADINHO E O LAMBEJO DA VACA

Ano 12 (2025) – Número 4 Causos

https://doi.org/10.31419/ISSN.2594-942X.v122025i4a4MLC

 

 

 

 

NA SINA COM A ALEMANHA: O CONGLOMERADO SOPA-BRUMADINHO E O LAMBEJO DA VACA

 

Marcondes Lima da Costa 

Geólogo UFPA 1972 – 1975), professor titular da UFPA, membro titular da ABC e pesquisador 1A CNPQ.
marcondeslc@gmail.com; mlc@ufpa.br

 

OBSERVAÇÕES

Este artigo foi escrito espontaneamente em alusão aos festejos dos 50 Anos da Turma de Geologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), cujos geólogos foram diplomados solenemente em 18.12.1975, no Ginásio de Esportes do Campus do Guamá desta Universidade, em Belém do Pará (Geólogos 1975). O objetivo foi simplesmente contar um pouco da experiência pessoal como parte da história desta turma de 1972 a 1975 com enfoque a sina com a Alemanha, que começa muito antes e se estende por muitas décadas após.

 

DEDICATÓRIA 

Dedico este manuscrito a nossa colega de turma de geologia 1975 Maria Telma Lins Faraco, in memoriam (14.03.1953 – 01.10.2024).

 

NA SINA

Um certo dia, quando eu deveria ter os meus 65 anos, alguém me perguntou se eu tinha uma sina com a Alemanha, e com os alemães, porque eu de vez em quando contava alguma coisa que envolvia esse país ou o seu povo. O interessante, é que eu, já tinha me tocado disto, e até iniciado uma reflexão. Então eu lhe disse que sim.

A minha sina com a Alemanha começou ainda na minha infância, quando os meus pais, juntos com seus três filhos, Marcondes, Maronísio e Maronilson, se mudaram da vila Morada Nova (hoje terra indígena fechada), para a cidade de Feijó. Na prática não era uma cidade, formalmente sim, pois era a sede do município de igual nome. mas no linguajar do pessoal dos seringais era, e a resumiam a rua, “hoje vamos pra rua”.

Lá fomos, eu e o Maronísio, para uma escola melhor, chamada de Grupo Escolar Prefeito Raimundo Augusto de Araújo, um prédio bonito e muitos professores, os mais competentes e éticos possíveis da época.

A Morada Nova dispunha de uma escola Rural, onde o meu pai era o professor de quatro classes do primário (primeiro ano atrasado, primeiro ano adiantado, segundo ano e terceiro ano), portanto, ele era também o nosso professor. Nós morávamos na escola que tinha três compartimentos específicos, a Sala de aula, o salão de recreio aberto e a residência da família do professor.

Foi em Feijó que comecei a descobrir, algo longínquo, impensável, a Alemanha, através dos padres da Igreja da Católica Nossa Senhora da Conceição, eles eram alemães. Eles despertavam um misto de autoridade, mistério, e sabedoria, até sobrenatural. Fiquei encantado. Comecei a visitar a igreja e a apreender a religiosidade e a notar que tinha outro mundo muito diferente do nosso de então. Decorei todos os passos e rezas da missa em latim. Nada entendia.

E assim começaram a se suceder muitas sinas com Alemanha: Cruzeiro do Sul no Acre e Cuiabá-Várzea Grande em Mato Grosso; Erlangen, Mainz e Göttingen na Alemanha.

A história que vou descrever daqui para a frente, começou a acontecer quando eu tinha já 21 anos, foi sem qualquer programação ou preparação. Aconteceu um novo encontro com o mundo Alemão e dessa vez já no curso de Geologia da Universidade Federal do Pará. Neste relato vou omitir intencionalmente um dos elos com os alemães, o mais forte, acontecido entre 1965 e 1969, que é uma longa e profícua história. Vou me deter àquele que me levou diretamente à Universidade, durante a graduação em geologia e à minha primeira experiência como geólogo recém-formado. Eram os idos anos de 1972 a 1976.

Em 1972, em Belém, passei no vestibular para a área de Ciências Exatas e Naturais, com primeira opção geologia. Essa opção foi produto de uma conversa ingênua e franca que tive com o meu professor de geografia no Colégio Municipal Alfredo Chaves (um prédio lindo na avenida Nazaré esquina com a travessa Quintino Bocaiúva), onde eu cursara o Científico para Exatas.

Os colégios públicos naqueles tempos eram prédios bonitos, grandes, bem localizados e muito competitivos, tínhamos que realizar seleção competitiva para ingressar nos mesmos. E comigo não foi diferente.

Nesta oportunidade o professor de geografia discorreu sobre geologia e sua potencialidade para os anos seguintes àquela época. Achei muito interessantes as considerações do professor, e então pensei em estudar geologia. Porém, em 1972 e 1973, os cursos mais procurados pela sua importância profissional eram engenharia eletrônica e civil. Fui criticado, pois a minha nota no vestibular fora muito alta, a quinta entre 400 vagas. O meu número de matrícula como consequência fora 7210005 até ao final do curso.

Em 1972 cursamos o básico numa sala dos pavilhões, sem qualquer conexão com a geologia, exceto a possibilidade de inserir algumas disciplinas optativas. No básico dominavam química, cálculo I e II, física I e II, físico-química, topografia, desenho, LPB, OSPB etc., com alguns bons professores.

No final de 1972, obtidos os créditos previstos e munidos do CRPL final (era um coeficiente que considerava em seus cálculos o número de créditos acumulados versus os conceitos obtidos: E, de excelente; B, de bom; R, de regular; I, de insuficiente; M, de mau; e SR, de sem rendimento). Obtive CRPL suficiente para ingressar, de fato, na minha primeira opção, geologia, que não era tão exigente.

1972 era o segundo ano da reforma universitária sob a direção do ministro da educação coronel Jarbas Passarinho. No modesto campus universitário do Guamá, instalado um ano antes, em 1971, que era simples, porém bem mais humano do que hoje, onde certos trechos se parecem mais com um favelão de prédios encurralados, era onde se frequentava a maioria das aulas. A UFPA deixava assim os seus prédios isolados pelas ruas da cidade, e se transferia gradualmente para um campus próprio (Figura 1), a exemplo dos EUA (esse modelo se expandiu para quase todas as Universidades do País). Aqui não foi sem muitas resistências, é claro. Reflexo do regime militar: a margem direita do rio Guamá era policiada nos primeiros anos. Os ônibus urbanos de Belém adentravam no campus, e os dias mais movimentados eram sexta-feira à tarde e sábado o dia todo. Hoje segundas e sextas-feiras são dias encurtados. Eu estava feliz e deslumbrado no início, fazia questão de usar a bata branca com inscrição no bolso, “Geologia UFPA”. Estava com os meus 21 anos de idade, pobre, mas esperançoso.

Em 1973, matriculado em geologia, e frequentando disciplinas diretas da geologia, passei a conhecer os colegas de curso. Os colegas oscilavam 25 e 30 indivíduos, mas, no final só concluíram 28.

O curso era na base de créditos, e, não de semestre. Quanto mais disciplinas realizávamos com sucesso, mais rápido se avançava no curso, e assim alguns que não preencheram estas premissas, ficaram para trás. É bom lembrar que estávamos em pleno regime militar, e se notava algumas restrições ou presença de observadores, mas sem qualquer transtorno digno de nota.

Nesse mesmo ano, em 1973, à medida que fui assistindo às aulas de geologia geral e mineralogia I, percebi que era muito raso o nível do curso, os professores do momento não possuíam grande vulto de conhecimento, alguns com certa dose de prepotência e no ofício, eram quebra-galhos ou biqueiros.

O livro Geologia Geral de Viktor Leinz, em sua versão inicial, elogiado por um professor, que dizia “um bom geólogo tem que ter o Viktor Leinz na cabeceira de sua cama”, era para mim muito primário. Postilas amarelas grassavam embaixo dos sovacos dos professores. Eles faltavam às aulas, ou quando surgiam, as abandonavam antes do tempo. Alguns colegas de turma até gostavam.

Várias disciplinas, um pouquinho mais avançadas, eram ministradas à noite e em tempo encurtado, com muitas ausências dos professores com o uso da expressão “por hoje…, é só”, qualquer acontecimento era pretexto para não ministrarem as aulas. Os professores eram profissionais da Petrobrás, ou do Governo do Estado, e vinham quebrar o galho da Universidade, um biquinho. Fiquei desanimado e arrependido. Podia ter optado pela Engenharia Eletrônica, mas já era tarde.

 

Figura 1 – No campus do Guamá da UFPA, em 1973, ainda em construção.

 

Meses depois, ainda em 1973, mas lá para o fim do ano, cochichava-se nos pavilhões sobre desavenças entre os professores (nesta época o campus do Guamá era dominado por pavilhões, prédios simples, térreos, pensados como temporários; a maioria das aulas fora ministrada nesses prédios). Mais tarde, fui descobrir que o MEC (Ministério da Educação e Cultura, presidida pelo Coronel Jarbas Passarinho) informara ao reitor Aloysio da Costa Chaves, grande reitor (Figura 2), que o curso de geologia, por não apresentar infraestrutura compatível, deveria ser fechado. Contam então que o magnífico Reitor, não teria gostado da recomendação do MEC e que logo procurou solucionar o problema. Identificou pessoal do Pará e de outros estados do País, que estavam a realizar ou a concluir o mestrado e/ou doutorado nas áreas de geologia e geofísica. Nessa época o mestrado no Brasil era restrito e na Amazônia coisa de outro mundo. O doutorado, valha me Deus, nem pensar, era só no exterior. A UFPA não tinha nenhum curso ou programa de mestrado, e muito menos de doutorado. Mesmo assim, ainda, 1973, fora criado o NAEA (Núcleo de Altos Estudos Amazônicos), porém, os seus frutos vieram anos depois, aliás, em toda a Amazônia, e, em boa parte do Nordeste, não tinha pós-graduação. Hoje eles estão sobrando.

O reitor Aloysio então viajou para o Sudeste do País, encontrou-se com alguns paraenses com mestrado (M.G.S. Guerreiro, H.S. Sá, A.G. Oliveira), e com outros com o doutorado ou realizando o doutorado fora do País (J.S. Lourenço, C.A. Dias, que era da UFBA, J. M. F. Bassalo, H. Maltez, entre outros). Também se encontrou com não paraenses como, E. Paiva (carioca, carinhosamente conhecido por Picici), casal Cunha (Roberto e Maria) do Rio Grande do Sul. Todos eles foram contratados, com o objetivo de revolucionar a geologia e tornar realidade o Curso de Pós-Graduação em Geofísica (1973), que contou com o apoio do prof. C.A. Dias. Logo depois foi denominado de Programa de Pós-graduação em Ciências Geofísica e Geológicas, e mais tarde (1991) desmembrado, em Programa de Pós-graduação em Geologia e Geoquímica (PPGG) e Programa de Pós-graduação em Geofísica (CPGf), os quais assim permanecem até hoje.

Naqueles tempos idos, a Geofísica era o grande destaque nacional. Além de contratar os novos professores, ao mesmo tempo, o Reitor demitira aqueles professores temporários de aulas noturnas e outros que estavam criando dificuldades para a nova equipe. Conclusão: uma revolução completa. Sim, ele demitia, ele tinha poder para isso. Surgia um novo curso de Geologia com novos professores, com excelente formação, atuando tanto na graduação como na pós-graduação (PPGG e CPGf). Portanto, graduação e pós-graduação estavam atreladas entre si, e, logo se projetaram nacional e até internacionalmente. Para mim foi simplesmente fantástico. Um novo mundo de ótimas perspectivas se iniciava.

Veja que interessante, que encontrei na Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Aloysio_Chaves#cite_note-fgv-2, acessada em 13.5.25), transcrito de “Aluisio da Costa ChavesCPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil”, para reforçar a importância do histórico que estou apresentando aqui: “Ainda em 1970 visitou (refere-se a Aloysio) a República Federal da Alemanha, a convite do governo de Bonn (era na época a capital da Alemanha Ocidental). Em 1972 retornou à Alemanha como representante da UFPA, assinou vários convênios e fez palestra na Universidade de Bonn. Em 1973 foi aos Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado, para fazer palestras nas universidades de Missouri e Gainsville, na Flórida”. Assim surgiu o curso de Depósitos Minerais sob organização do prof. José Carlos Raymundo. Vejam que o reitor Aloysio durante o seu reitorado manteve forte ligação com a Alemanha (República Federal da Alemanha, a Ocidental; estávamos em plena Guerra Fria, OTAN/NATO versus União Soviética-Pacto de Varsóvia).

 

 

Figura 2 – Reitor Aloysio Chaves, Colégio Alfredo Chaves e sede do IDESP.

 

Era a virada de 1973/1974. A infraestrutura física para o curso de geologia estava representada em parte pelo então prédio-sede do Centro de Ciências Exatas e Naturais e pelo Laboratório de Geologia-Ensino (Figura 3), isolado, ao lado dos dois prédios irmãos da SUDAM, voltados para as pesquisas dessa instituição, que não permitia acesso a nós alunos, e, nem aos novos professores, inicialmente. Somente parte dos professores que foram posteriormente demitidos, tinham acesso. Para chegarmos ao nosso prédio de geologia-ensino tínhamos que caminhar sobre pinguelas de madeira ou blocos de cimento dispostos sobre o brejo que dominava na área.

O laboratório de geologia-ensino compreendia 4 espaços laboratoriais bonitos, muito modernos à época, similar aos da SUDAM: geologia; petrografia com vários (acho que 15) microscópios óticos Zeiss da Alemanha Oriental (República Democrática da Alemanha), cada um pesando 20 Kg (imagino, eram muito pesados mesmos); de paleontologia (lindo e funcional) com uma grande mesa branca ao centro) e rodeada de tamboretes bonitos de sucupira; e geoquímica, também muito lindo e funcional para a época. Os laboratórios da SUDAM eram também muito bonitos e contavam com equipamentos de ponta para época, como difração de raios X, absorção atômica, espectrografia óptica de emissão, equipamento de restituição e tratamento de fotografias aéreas. As de radar chegaram em 1972/1973 com o RADAM, que eram exclusivas deste, além de um moderno laboratório de análises químicas sob a comando da Dra. Clara Pandolfo.

O laboratório de geologia-ensino contava, ainda, com um gabinete amplo e bonito para o professor líder do laboratório, bem como, com uma sala auxiliar, banheiros e depósito, e uma ampla varanda. Esse prédio foi “negociado” pelas administrações democráticas das últimas décadas do IG; comentam que com a vizinha biologia. Foi abandonado à própria sorte sob tortura climática por muitos anos (Figura 3), depois demolido parcialmente, e, depois tratorado. No espaço deixado, foi iniciada uma nova obra, paralisada antes da pandemia, e hoje é ocupada por lixo, capoeira e tapumes que também estão a desmoronar. Uma vergonha!!!, digna de COP-30. Que tristeza!!!

 

Figura 3 – O então laboratório de geologia-ensino e seu abandono e destruição.

 

Mas aonde quero chegar, depois de toda essa história aparentemente sem sentido: a continuada construção do elo com a Alemanha. Vejam que os microscópios eram alemães e o espectrógrafo óptico, também da Alemanha.

Pois é, com a nova equipe de professores, pessoal com todo gás, garra, empolgamento, saindo do mestrado e doutorado, pensando grande, competente, e com o aval do magnifico Reitor, que tinha poder e vontade de fazer o melhor, o mundo ao nosso redor mudou por completo, de forma positiva.

Cooperações internacionais surgiram com os EUA, a Alemanha, França, Austrália, ao longo dos anos seguintes. Os nossos professores de Graduação eram brasileiros e estrangeiros (Estados Unidos, Alemanha, França, Índia, Bolívia, Portugal), e, estávamos em pleno governo militar, hoje conhecido como ditadura, mas tínhamos um quadro internacional, digno das melhores universidades do mundo. Não era uma Torre de Babel, mas um centro fervilhante de ensino e pesquisa com equipe internacional. Hoje, esse quadro, praticamente, desapareceu. Vale lembrar, que não havia concurso público para ingresso na UFPA naquela época. Os professores podiam ser contratados ou demitidos diretamente pelo Reitor. Eu mesmo fui contratado por 4 meses, via CLT, em 3/1976, e também demitido em 1978.

Vejam que o Mundo Alemão estava novamente no meu caminho, ou eu, no caminho dele. Ele era representado por professores e equipamentos. Estávamos já em 1974 quando surgiram cooperações com instituições de pesquisa desse País. Um dos projetos era conhecido como geoquímica (tinha também o de geofísica), que fazia parte de um maior, denominado de PROJETO INTEGRADO, e uma das universidades de contato era Erlangen-Nürnberg, na Alemanha, que para mim era uma ilustre desconhecida. Aliás, quase ninguém do nosso círculo de convivência a conhecia. Ao conhecê-la mais tarde, fiquei deslumbrado, e vi o quanto ignorante eu era. Nürnberg surgia perdida no horizonte por conta de Hitler e da segunda guerra mundial (julgamento de Nürnberg).

Começamos a ser visitados e apoiados por professores da Alemanha, como o prof. R.G. Schwab, T. Scheller, J. Kuzel, W. Schuckmann, um casal alemão Peterson Mathias e sua esposa com vivência em Santorinni (Grécia), além de outros da geofísica como K.R. Schiel e J. Bischoff etc. Vários deles ficaram na UFPA por muitos anos.

Quando troquei a língua estrangeira, francês por alemão, que era ministrada na casa de Estudos Germânicos, conheci outro novo guru, Klaus Geissler.  Porém, o meu contato com ele na graduação ainda era muito incipiente, pois eu era da plebe baixa, não tinha RUF (nome de destaque).

O prof. Nilson Pinto de Oliveira, então recém-graduado, e logo matriculado como aluno de pós-graduação no nosso recém-criado Programa de Graduação, mais tarde contratado (CLT), embora não possa afirmar com certeza, como professor do curso de Geologia (além dele, Péricles e Ana Maria Soares, também teriam sido contratados). Ele foi um dos primeiros alunos do mestrado em geoquímica, e teve como orientador o prof. R.G. Schwab, que viria a ser o meu orientador de doutorado em 1979, Erlangen na Alemanha.

Nilson, com ótimo domínio da palavra, de redação e elevado senso para descobrir oportunidades, contou com o apoio do prof. Schwab para orientá-lo a operar o espectrógrafo óptico de procedência alemã, que estava nos laboratórios da Física, e nunca fora utilizado de forma rotineira. Assim, conseguiu realizar análises químicas de elementos traços, para o desenvolvimento de sua dissertação de mestrado sobre os fosfatos de alumínio de Santa Luzia (no leste do Pará). Na época era muito difícil realizar análises químicas de elementos traços. Os equipamentos eram se comparados com os de hoje, muito básicos, restritos, custosos e no Brasil, praticamente inexistentes.

Esse meu novo elo com a Alemanha, começava indiretamente com o prof. Nilson. Tínhamos também dois professores indianos, Pethambaram Doraibabu e Asit Choudori, que nos deixaram um grande legado e muitas histórias de vivência humana. O próprio Doraibabu me levou a crer por alguns meses, que os fosfatos de alumínio, que, eu e Emanoel Piedade Viegas, descobríramos no Km 3.2 (igarapé Jeju), da rodovia PA-12 (isso ocorreu em julho de 1974 e retornos entre 26.02 a 06.03.1975), fosse a zeólita prehnita, Ca2Al2Si3O10(OH)2. O professor Guerreiro, o nosso orientador, achou que fosse pectolita, de imediato (Figura 4; 5).

Felizmente, logo depois, por análise de difração de raios X, constatamos se tratar de crandallita-goyazita, (Ca,Sr)Al3(PO4)2(OH)5. (H2O) (Figura 5). Mas não é que se pareciam tanto no hábito, cor, quanto em parte na composição química. Assim descrevemos esse mineral no nosso relatório de julho de 1974 (Marcondes e Emanoel Viegas):

 

Figura 4 – Excerto do relatório de Marcondes e Emanoel (Relatório Preliminar do Levantamento Geológico ao Longo da Estrada PA-12 entre Km 0.0 e Km 18.0) sobre a ocorrência de pectolita.

 

Figura 5 – Notas de jornal (O Liberal) sobre fosfatos; a crandalita de Santa Luzia; e o Morro Jandiá.

 

Enquanto isso eu avançava com todo empenho no curso de graduação e, geologia, agora bombando. Aproximara-me dos professores Manoel Gabriel Siqueira Guerreiro e José Haroldo da Silva Sá, os meus grandes gurus, pessoas grandiosas e muito amigas. Eu auxiliava-os nas aulas práticas, excursões, e conseguira até bolsa de IC do CNPQ, naquela época concedida diretamente pela presidência do CNPQ. As bolsas eram raras. Antes fora monitor de Físico-Química no curso de Química, por mérito seletivo, que me permitiu deixar o emprego na Mesbla S/A. Por esse meu envolvimento com os professores, os meus colegas me chamavam carinhosamente de puxa-saco, e tinha até uma cantiguinha, que cantarolavam principalmente dentro do ônibus monobloco da UFPA durante as nossas excursões de campo, que não foram muitas, por falta de dinheiro.

Mas falta ainda o elo alemão para o título desta história.

Pois é, ele começa também em 1973, mas vai se concretizar apenas a partir de 1975. Em 1973 o prof. José Carlos Raymundo, sempre muito presente, já falecido, e que gostava muito de mim, entrou em cena com a sua autoridade professoral extraclasse. Ah sim, ele me doou vários livros, um deles sobre mineralogia, com o qual apreendi alguma coisa, – L.G. Berry & B. Mason, 1959. Mineralogy – Concepts, descriptions, determinations. W.H. Freeman and Company, USA. Esse livro, embora pela data de publicação fosse já antigo, foi para mim um grande marco, pois em março de 1976, quando fui contratado pela UFPA como professor colaborador por quatro meses, para lecionar Mineralogia, eu precisava de um bom livro, pois o famoso Manual de Mineralogia de Dana (versão em português da USP), o nosso livro-texto da graduação, não me ajudava.

Eu não sabia nada de mineralogia e me dirigi ao chefe de Departamento prof. José Haroldo da Silva Sá, para lhe dizer que eu não tinha condições de ministrar essa disciplina. – “Professor eu não sei nada de Mineralogia” -, ao que ele prontamente me respondeu: – “Problema seu, se vire”.  Foi aí que eu corri para Berry & Mason, com o meu inglês de botequim, e ele quebrou um grande galho. Apreendi na marra, expressão essa que sempre me remetia ao nosso livro de Físico-Química, cujo autor chamava-se B. Mahan, e a gente se referia a ele, está no Marra (Mahan). Era, e ainda, é um bom livro.

Bem, já me resvalei de novo. Pois é, a turma de Geologia de 1973 precisava de estágio de campo mais avançado, e ele, o prof. José Carlos Raymundo, encontrou uma saída. Ele sabia da importância, na época, da mina de wolfrâmio ou tungstênio (scheelita, CaWO4, era o principal mineral-minério de wolfrâmio) de Currais Novos, no Rio Grande Norte e muito importante para o Brasil e Estados Unidos. O prof. José Carlos falava inglês bem, raridade da época, ou até hoje. Ele esteve algumas vezes nos EUA, e quando lá esteve, visitou várias jazidas minerais, principalmente de cobre e boro. Tinha fortes contatos com a Universidade de Missouri e até organizou cursos de Depósitos Minerais com professores de lá.

Ele apresentou a sua ideia, uma visita a Currais Novos, para a turma de Geologia de 1973, como uma possibilidade de estágio. A turma logo fez a pergunta óbvia, “como chegar lá?”, ao que ele respondeu, “vou falar com o Brigadeiro Protázio” (Protázio é hoje imortalizado como nome de uma avenida simpática de Belém) para disponibilizar avião da FAB, que naqueles tempos idos ainda representava o notável Correio Aéreo Nacional (CAN). Nos dias de hoje transporta políticos e “políticos” para cima e para baixo no País e em longas jornadas para o exterior.

Dias depois toda a turma estava em Currais Novos, visitara a mina e arredores, trouxera muitas amostras lindas de calcita, scheelita, granada, epidoto, vesuvianita, calcopirita etc., que estão no Museu de Geociências. Eu pessoalmente, estive lá em 2023, 50 anos depois da Turma 1973, por ocasião da Viagem Pitoresca pelo Sertão, organizada pelo GMGA-BOMGEAM sob a liderança de Milson Xavier (https://gmga.com.br/categoria/bomgeam/ano-11-2024-numero-1-pitoresca-pelo-sertao/).  Foi emocionante.

Mas a turma ainda precisava de uma atividade de mapeamento. E aí se descobriu que tinha um Instituto chamado Eschwege, em Diamantina, Minas Gerais (coisa de alemão!!!), que propiciava esta atividade a custo zero, quando estivesse em Diamantina. Mas como chegar lá?

Era ainda 1973. As rodovias estavam restritas ao Centro e Sul-Sudeste do País. A Belém-Brasília, a estrada da onça, era em grande trecho só de barro, piçarra ou lama. Viagens de ônibus duravam uma eternidade. Foi aí que entrou novamente o prof. José Carlos, – “vou falar com o brigadeiro” -, dito e feito.

Mas eis que surge um outro problema, dizem. A pista de pouso de Diamantina estava inoperante há muitos anos, fora invadida pelo mato e animais. Nem sei se isto é realmente verdadeiro ou do anedotário. A Aeronáutica em conjunto com o governo de MG e/ou prefeitura de Diamantina, cuidaram de limpar a pista. É, o professor José Carlos realmente tinha nome forte na Aeronáutica. Tempos depois a turma de Geologia 1973 (posso mencionar aqui ex-alunos como Nilson Pinto de Oliveira, Luís Ercílio C. Faria, Ronaldo L. Lemos, Péricles Prado, Ana Maria Soares etc.), embarcou em um C 47 da FAB (imagino que foi uma aeronave como essa) por longa rota, que naquela época era via Marabá, Imperatriz, Porto Nacional, Brasília, Belo Horizonte. Daí para Diamantina a aeronave sobrevoou a cidade, parte da população acorreu para assistir à chegada de uma aeronave militar, que há muito tempo não grassava por aquelas bandas, talvez tivesse sido com JK, imagino eu. Era a primeira turma de geologia da UFPA que chegava ao Eschwege, e pelos ares. Permaneceu por aí, segundo os arquivos constantes em Fantinel (2005) de 15 a 30.06.1973.

E como o Instituto Eschwege ingressou como novo elo no meu grande laço com Alemanha?

Esse Instituto foi criado em 3 de outubro 1969, em decorrência do programa de cooperação técnico-científica na área de geologia estabelecido pelo Ajuste Complementar ao Acordo Básico de Cooperação Técnica e Científica formado em 30 de novembro de 1963, pelos governos da República Federal da Alemanha (aqui entra a Alemanha Ocidental, ou República Federal da Alemanha; os equipamentos citados anteriormente eram da Alemanha Oriental, dita República Democrática da Alemanha, sob jugo da União Soviética) e do Brasil (Fantinel, 2005).

O Instituto Eschwege foi efetivamente instalado em setembro de 1970. Ele foi idealizado pelo eminente professor alemão Reinhard Pflug. Seu objetivo principal: “constituir no principal espaço institucional em território brasileiro a oferecer cursos de campo voltados para o ensino de mapeamento geológico em nível de graduação, a servir de suporte para as atividades de pesquisa sobre a geologia da Serra do Espinhaço meridional, incluindo o apoio às pesquisas de pós-graduandos brasileiras e alemães, e a viabilizar o intercâmbio científico e cultural entre pesquisadores da área” (Fantinel, 2005). Pflug nasceu em 1932 na Alemanha, se graduou em geologia pela Universidade de Bonn em 1955 e em 1958 concluiu o seu doutorado na mesma universidade. Em 1960 após trabalhar em pesquisas para petróleo na Espanha e África, veio para o Brasil como professor da Escola Nacional de Geologia do Rio de Janeiro (atualmente faz parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ), onde ficou até 1964. Foi quando desenvolveu várias pesquisas sobre a geologia do Brasil, especialmente entre o Rio e Minas, e em dada viagem de reconhecimento para o seu empreendimento do Eschwege, chegou até a Serra do Espinhaço, e ficou deslumbrado com o que viu sobre todos os aspectos, além da geologia, reforçados pela disponibilidade de fotografias aéreas cobrindo toda a região. Um mimo para aquela época, disponibilizadas pela companhia Cruzeiro do Sul e fundamental para realizar mapeamento geológico. Encontrara assim as condições para estabelecer um instituto de treinamento de estudantes de geologia, face às condições geológicas ideais, aliadas às climáticas e de infraestrutura. Antes disso em 1964, ele com base nas pesquisas geológicas realizadas no Brasil, apresentou a sua tese de habilitação (livre docência) junto à Universidade de Heidelberg, tornou-se Herrn Professor desta Universidade, e assim adquiriu as habilidades formativas, renome, para pleitear a criação do Instituto. Anos depois, em 1976, era promovido a diretor do Instituto de Geologia da Universidade de Freiburg. Mais à frente vou mostrar, como eu flui influenciado pelo Eschwege.

Certamente, os leitores, já podem perguntar ou imaginar, o porquê do nome Eschwege?  Pflug quis prestar uma justa “homenagem a Wilhelm Ludwig von Eschwege, metalurgista saxão e tenente-coronel do Corpo de Engenheiros do Exército Real de Portugal, que empreendeu estudos geognósticos especialmente na província de Minas Gerais, no período entre 1811 e 1822, e a quem se atribui a autoria da expressão toponímica Serra do Espinhaço” (Fantinel, 2005). Ele deixou a obra-prima: Pluto Brasiliensis, escrito em alemão, publicada em 1833 por G. Reimer. Já dispomos de três versões em português (Figura 6), as duas últimas publicadas pela Universidade de São Paulo, e Edições do Senado Federal. Ele nasceu em 1777 em Eschwege e faleceu em 1855 na Alemanha. Vejam que o seu nome inclui o do vilarejo onde nasceu. Eschwege deixou 23 publicações escritas, em alemão, francês, inglês e português. Formou-se em engenharia de minas pela famosa Escola de Freyberg (hoje em Freiberg está o maior, rico e mais lindo museu de minerais do mundo: Terra Mineralia, que eu já visitei; https://www.terra-mineralia.de/).

Antes de vir para Brasil, Eschwege foi contratado em 1803 pelo governo português, para dirigir as fábricas de ferro nacionais, entre as quais se destacava a de Figueira de Vinhos. No Brasil, além da direção do Real Gabinete de Mineralogia, do Rio de Janeiro, Eschwege foi encarregado de estudar e incrementar a já decadente indústria de mineração. Exausto, desgostoso talvez por conta dos obstáculos que sempre lhe eram apostos pelo próprio governo, abandonou o Brasil em 1821, retornando a Portugal. De 1829 a 1834 viveu na Alemanha, onde, nos retiros de Cassel e Nentershausen, escreveu as suas melhores obras (trecho de Domício de Figueiredo Murta, escrito em 1994 na edição do Senado Federal de Pluto Brasiliensis).

Neste tópico o leitor percebe a forte influência alemã, envolvendo dois eminentes pesquisadores, um dos séculos XVII/XIX, Eschwege, e outro do século XX, Pflug, o mentor e criador do Instituto e o anterior o referencial histórico pioneiro da metalurgia no Brasil. Razão por que se conclui que Pflug escolheu o nome Eschwege para denominar o Instituto que propusera. Os dois tinham muito em comum e, óbvio, o primeiro, grandioso, influenciou fortemente o segundo em todos os aspectos. Eu confesso, que me sinto diante dos dois, como um grão de areia perdido nas areias de todas as praias, nos arenitos e quartzitos da estratigrafia de todo o tempo geológico.

 

Figura 6 – Capa do livro Pluto Brasiliensis, de W.L. von Eschwege.

 

A turma de geologia de 1973, a primeira da UFPA a estar no Eschwege, contava maravilhas, e nós fomos ouvindo e construindo uma imagem positiva, principalmente eu, daquele instituto. E isto se tornou realidade em 1975.  E em 5 de janeiro de 1975 chegamos no Eschwege, em Diamantina e lá permanecemos até 18.01.1975. O professor Gabriel Guerreiro foi o nosso guia e guru. Como professor também nos acompanhou Nilson Pinto de Oliveira, mestrando do PPGG. Fomos de ônibus de linha: Belém-Brasília, Brasília-Belô (Belo Horizonte) e Belo Horizonte-Diamantina. Atendíamos então a disciplina curricular denominada de Estágio de Campo I.

O Instituto Eschwege na nossa época estava instalado numa casa colonial, grande, com varanda, piso e altos, na rua Silvério Lessa. Fomos recebidos pelo seu diretor alemão prof. Dr. Walter Schöll, pelo geólogo Arno Brichta, descendente de alemão e pela secretária sra. Idelma, um anjo.

A cidade, Diamantina, era um deslumbre. Casas lindas, coloniais, pintadas de branco e azul Del-Rey, encravadas nas encostas íngremes de quartzitos do Supergrupo Minas, que guardam nos seus seios o CONGLOMERADO da Formação SOPA-BRUMADINHO, o principal portador de diamantes, que tornara o Brasil no século XVIII e XIX o maior produtor de diamantes do Mundo, e Diamantina a joia da Coroa Portuguesa, deslocando a hegemonia da Índia em diamantes.

Juscelino Kubitscheck, mais conhecido por JK, nasceu e cresceu em Diamantina. As suas ruas, ruelas, ladeiras, os seus paralelepípedos, as placas de quartzitos, as suas inúmeras e lindas igrejas, os seus restaurantes, bares e musicalidade, com serestas e serenatas, além de meninas lindas, com clima ameno e a paisagem de montanhas, sem monotonia, me cativaram. Foi a combinação perfeita entre Eschwege e Diamantina. Pflug foi um gênio. Por muitos anos o Eschwege original (sob orientação alemã, por uma década) pelo seu rigor e por sua ligação à Diamantina atraiu os estudantes de geologia do Brasil e da Alemanha. Eu fui um deles. Só tenho a agradecer à vida esses elos germânico-geológicos que se foram enlaçando a pari-passo na minha jornada, mas que não foram por acaso, como aparenta à primeira vista, e que mais tarde, abririam caminho para o meu doutorado em Erlangen (1979-1982), um período magnífico!

A convivência com o diretor Walter e o geólogo Arno, duas grandes referências de profissionalismo e comportamento ético e moral, que nos acompanharam como guias nos primeiros dias (6 e 7.1.75) de campo para apresentação da Geologia Geral em pontos estratégicos, subindo na estratigrafia: embasamento (Granito Gouveia), Supergrupo Pré-Minas (Rio das Velhas) e Supergrupo Minas, e aqui o famoso conglomerado da Formação Sopa-Brumadinho, foi cativante. O Professor Guerreiro também nos acompanhava, muito orgulhoso e feliz pelo sucesso da empreitada.

Confesso que não entendi muita coisa no primeiro dia, mas, graças a Deus, anotei tudo em detalhe na minha caderneta de campo (Figura 7). Ao revê-la, fiquei muito orgulhoso e emocionado.

Nos dias seguintes se iniciou o mapeamento de quadrículas pelos grupos (nossa turma fora dividida em grupos), e ao meu grupo, o IV, coube uma quadrícula de 15 Km2 a leste da cidade de Datas-MG, próxima à Diamantina. Esse grupo era formado por: Emanoel P. Viegas, Henrique Diniz, eu, Jaime Eiras e Humberto Panzutti. A gente dispunha de fotografias aéreas, martelo, bússola Brunton, lupa 10x, sacos plásticos e para merenda água (cantil), uma laranja ou maçã e um sanduíche. Às 6:30 jipes semiabertos nos deixavam próximos à área de trabalho e vinham nos buscar ao final da tarde, ao escurecer. Nos primeiros dias os grupos eram acompanhados ou orientados por um professor, em geral parcialmente.

No dia 10.01.75 foi o prof. Guerreiro que acompanhou o nosso grupo. Era subir e descer serras, pirambeiras, sob clima ameno, às vezes frio, muita pedra, muitas flores (sempre-vivas), capim e arbustos, mata fechada era rara. Uma paisagem muito distinta da Amazônia em geral, que conhecíamos um pouco.

Jantávamos no restaurante Chica da Silva, enquanto as mocinhas da cidade, ficavam entrando e saindo nos banheiros ao fundo com suas portas tipo faroeste, em desfile de apresentação e reconhecimento. Após a janta voltávamos para o Instituto para organizar os dados obtidos durante o mapeamento do dia, ler a literatura disponível e preparar o caminhamento para o campo do próximo dia. Depois dávamos uma volta pela noite da cidade, para o gole de cachaça para depois imiscuirmos nas serestas. Os dois últimos dias foram dedicados à elaboração do relatório final e deixar o Instituto, e claro, aguardar a nota, a avalição.

No dia 18.01.75 deixamos Diamantina, e no trajeto até Belô, fizemos várias paradas geológicas, que estão anotadas na minha caderneta. De lá fui pra Salvador, Fortaleza, Teresina, São Luiz e Belém, com o colega Emanoel Viegas. Encantei-me, e o meu mundo alemão crescia. O Eschwege parecia ser o meu Ziel, objetivo próximo. E penso que deixei uma boa impressão, também. Infelizmente não guardei cópia do nosso relatório. Mas não saíram da minha mente as Formações Sopa-Brumadinho e Galho do Miguel, dominados por conglomerados “grosseiros”, uma sopa, e quartzitos, respectivamente. Mas não encontramos nenhum diamante.

O conglomerado é algo notável, fora do comum, com seixos de seixos, mas os de quartzitos dominavam, convenhamos tinha de tudo dentro dele, uma sopa mesmo, só não víamos os diamantes. Talvez eles tenham nos vistos. As flores sempre-vivas grassavam e enfeitavam a paisagem e os quartzitos muitas vezes com as suas películas “silicosas” cantavam em voz aguda ao toque do martelo.

ESCHWEGE e Diamantina ficaram indeléveis na minha memória e o meu cérebro continuou processando e reprocessando tudo (Figura 8, 9).

 

Figura 7 – Excertos da caderneta de campo de Marcondes em Diamantina-MG, 1975.

 

Figura 8 – Imagens de Diamantina em 1975 e excerto da caderneta de campo de Marcondes.

 

Figura 9 – Imagens de Diamantina 1977 e depois em 2022, novo (Casa da Glória) e velho endereço do Instituto Eschwege (Rua Silvério Lessa).

 

A 18 de dezembro de 1975 éramos diplomados geólogos no então moderníssimo ginásio do campus da UFPA no Guamá, que fora praticamente inaugurado para esta solenidade e está ilustrado em figura anterior. Foi uma grande festa comunitária para os cursos da área de Exatas e Naturais. Estávamos felizes, rodeados de parentes, amigos e namoradas(os) ou esposas(os). A maioria dos meus colegas já estava contratada como geólogos. A demanda por geólogos era alta, pois a atividade mineral avançara na Amazônia, como previra o meu professor de Geografia do colégio Alfredo Chaves e pesquisador do IDESP. Eu preferi ficar desempregado, pois sonhava ingressar como professor na UFPA, portanto em contradição ao meu pensamento do colégio. Fui duramente criticado por vários colegas. – “Como um menino pobre, rejeita emprego de grandes empresas, com bons salários e polpudas diárias!”

Nessa altura surgiu a oportunidade de realizar um estágio extracurricular no Eschwege, assim, realizei o meu sonho, já como geólogo. Em janeiro de 1976, fresquinho, recém-graduado, fui para Diamantina e lá permaneci de 11.01 a 07.03.1976. O meu deslocamento e a minha estadia em Diamantina foram financiados pelo Núcleo de Ciências Geofísicas e Geológicas da Universidade Federal do Pará, que era coordenado pelos professores José Seixas Lourenço (coordenador) e Antônio Gomes de Oliveira (vice coordenador) e pelo Instituto Eschwege através do seu diretor, Prof. Dr. Walter Schöll. Ainda recebi apoio do geólogo Oswaldo Obata do Escherge, que ficou pouco tempo por lá e do prof. João Batista da UFRJ.

Em 12.01.76 iniciávamos os nossos trabalhos de campo de reconhecimento geral, que incluíam graduandos da UFRRJ, UFRJ, UFPA e Rio Claro-SP, éramos umas dez pessoas. Foram dois dias de intensas atividades voltadas para a geologia regional, quando percorremos grande trajeto que cobria uma geologia complexa, sob orientação do prof. Arno Brichta. Agora era algo bem mais abrangente do que fora no estágio curricular realizado no início de 1975.

Enquanto os demais ficaram realizando cartografia da Serra do Espinhaço, o prof. Walter colocou-me a estudar a Formação SOPA-BRUMADINHO e os seus minerais PESADOS na região de Diamantina e entorno. Era um trabalho praticamente inédito, e que iria fazer parte das pesquisas do geólogo alemão Frank Turinsky e do prof. Arno Brichta, pois eles gostariam de utilizar esses estudos nas suas teses de doutorado, cujos trabalhos de campo estavam em andamento na Serra do Espinhaço. Frank foi o meu companheiro de laboratório nas análises granulométricas, na separação dos pesados e preparação das lâminas. Muito mais tarde, em 1980, Frank envia-me uma separata do seu trabalho com uma dedicatória a mim e à Walmeire, que esteve na época conosco em Diamantina.

 

Figura 10 – O ícone (dois martelos de geólogos cruzados) para os geólogos 1975 UFPA publicado no Jornal “O Liberal” em Belém, Pará.

 

Agora entro de fato no título desta história. Comecei do comecinho, não tinha nenhuma experiência com rochas quartzíticas e metaconglomerados Proterozóicos, e muito menos com minerais pesados e diamantes. Fui debruçar-me com o grande livro, o pai do estudo de minerais pesados (Figura 11), A. Parfenoff, C. Pomerol et J. Tourenq. 1970. – Les minéraux en grains: méthodes d`éetude et détermination. Masson & Cie, 574p. A gente chamava apenas de O Parfenoff. A professora Odete Maria (felecida em 2009), fez uma cópia com capa dura do livro (o livro estava exaurido) e presenteou-me com uma dedicatória. Fiquei felicíssimo. Está numa das minhas estantes.

 

Figura 11 – Capa do livro “Les Minéraux em Grains” de A. Parfenoff et al., 1970.

 

Mas antes disto eu precisava realizar os trabalhos de campo nas principais lavras, concentrando-me principalmente nas lavras de Guinda, Sopa e Brumadinho.

Os principais objetivos do meu trabalho extracurricular foram alcançados, e consistiam em:

  1. Estudo detalhado da geologia das principais lavras da região de Guinda e Sopa, com ênfase a Formação Sopa-Brumadinho e sua estratigrafia;
  2. Coletas de amostras das principais litologias da Formação para análises granulométricas e identificação dos minerais pesados;
  3. Análises granulométricas e avaliação destas através de histogramas, curvas acumulativas, grau de arredondamento, esfericidade e seleção;
  4. Separação dos minerais pesados, confecção de lâminas para identificação com auxílio de microscópio de luz polarizada;
  5. Estudo dos minerais pesados, o principal capítulo desta pesquisa, visando obter informações quando a rocha matriz primária, que pudesse apoiar a prospecção geológica desse mineral.

 

No dia 14.01.1976 iniciei literalmente sozinho os meus trabalhos de campo nas lavras (Figura 12). Mesmo assim fui classificado como grupo IV e recebi todo o material (esquadro, transferidor, trena, régua, altímetro, lupa de bolso, estereoscópio, fotografias aéreas em escala 1:10.000, 1: 25.000 e 1:60.000). Eu era deixado cedinho com as minhas tralhas de campo e a módica merenda (uma fruta, um sanduíche, água e minha máquina fotográfica Kodak (com filme diapositivo de carrinho, também Kodak, que custava uma fortuna, formato quadrado) em cava ou lavra previamente selecionada e ao final da tarde era recolhido. Foram 15 dias de campo. Os demais dias do estágio foram dedicados às atividades de laboratório e biblioteca. Sim, o Eschwege tinha uma boa biblioteca. Não existia internet na época, vale a pena lembrar. Foram trabalhos muitos exaustivos, pois coletei muitas amostras, e os processos eram todos manuais, para os quais eu ainda não tinha vivenciado, e, portanto, não tinha qualquer experiência, apreendi na marra.

Foi ótimo. Eu estava num mundo Alemão, dentro do Brasil: estrutura adequada, organização rigorosa e professores qualificados, além de uma cidade linda, limpa, segura e alegre, que dava muita inspiração.

Acompanhava-me a minha querida e inesquecível Maria das Dores M. Feliz, uma grande companheira, e tive apoio de Walmeire Alves de Melo, que futuramente seria a minha esposa.

 

Figura 12 – Excertos da caderneta de campo de Marcondes, no estágio de 1976.

 

Durante essa minha estadia no Eschwege passou por cá prof. José Haroldo da Silva Sá como já me referi, meu outro grande guru. Do Haroldo e do Guerreiro herdei o interesse pela mineralogia, fui contagiado. O Guerreiro tinha uma linda e preciosa coleção de minerais guardada em caixas de sapatos e de camisas, que mais tarde expôs em lindos armários na Alameda Moça Bonita em Belém, e o Haroldo tinha um bom conhecimento de cristaloquímica dos minerais. Desenvolvia o seu doutorado nos pegmatitos complexos e suas mineralizações ricas em minerais raros na região de Araçuaí-Itinga-Coronel Murta, norte de Minas.

Era já fevereiro de 1976, e o Prof. Haroldo convidou-me para passar uns dias mapeando os pegmatitos nessa região, em área da Companhia Arqueana de Minério Ltda, que explorava cassiterita. Ele estava previsto como meu futuro orientador de Mestrado. Foi um período ótimo de aprendizado e de coleta de minerais raros, principalmente de lítio, como a petalita, espodumênio (e as suas variedades, kunzita e hiddenita), lepidolita, rubellita, além de outros minerais como columbita-tantalita, cassiterita, pollucita, fosfatos de Fe, Fe-Mn, …exemplares deles sobravam na boca das galerias entalhadas nos pegmatitos (bota-fora), hoje não tem nem a sombra destes resíduos. Mais tarde, Haroldo, se tornara meu orientador de mestrado num tema que ele não gostava, talvez porque não tivesse conhecimento, aliás, ninguém no Brasil tinha, eram os fosfatos de alumínio lateríticos, que nada tinha a ver com pegmatitos.  Esses fosfatos eram então considerados como de origem guânica. Eu apreendi depois, na marra, e me contrapondo com tudo e todos.

Ainda em fevereiro de 1976 o professor Walter Schöll me convido para conhecer as pesquisas e depósitos de cromita, (Fe, Mg)Cr2O4, da região de Serro (Figura 13) e Alvorada de Minas, em Minas Gerais, de interesse da Bayer, uma empresa genuinamente alemã, voltada à indústria química, de porte internacional. Walter realizava estudos nesta região. Então mais um contato com a Alemanha. Foi mais um grande aprendizado geológico, muito distinto dos conglomerados Sopa-Brumadinho e dos pegmatitos a Li-Sn-Ta de Araçuaí-Itinga-Coronel Murta e Virgem da Lapa. Hoje esta região está na crista da onda, cujos minerais são vistos como minerais estratégicos/críticos (Li, Ta), fundamentais para a indústria de microchips e baterias de carros elétricos, a nova onda da sustentabilidade preocupada com as mudanças climáticas.

 

Figura 13 – Centro da cidade de Serro em 1976; exposição de quartzitos e a então residência de Walter Schöll.

 

Voltando aos trabalhos nas lavras, eu, sozinho o dia todo, mapeava os conglomerados (Figura 14) em detalhe com auxílio de trena e bússola, altímetro, anotava a sequência estratigráfica, e coletava amostras. Anotava tudo com calma e ainda selecionava uma parede (superfície plana) do conglomerado para com uma esquadria, mapear seixos e matriz. No caso dos seixos, mensurava tamanho, forma, composição lítica ou mineral, deformação, venulações etc. Tudo isto levava muito tempo e me distraía por completo.

O silêncio só era interrompido pelo sibilar do vento frio. Eu conversava comigo mesmo. E em um dado dia em dada cava, eu completamente entretido em estudar os seixos de uma parede do conglomerado “Sopa”, ou seja, conversando com eles, não percebi que tinha recebido uma visita, uma visita muito inesperada, sem qualquer aviso prévio, só percebi quando ela, já graciosa, com sua língua áspera e grande, lambia as minhas costas, que “lambejo”. Era uma grande vaca, branca. Foi um grande susto, principalmente para mim. Como ela adentrara, não posso imaginar, e lá ela ficou, um pouquinho afastada e eu continuei a minha labuta. Não estava mais sozinho, ela certamente não era alemã, mas marcou a minha presença nas lavras de diamante da região de Guinda e Sopa, do domínio de Diamantina (Figura 14, 15). Não tenho foto dela, apenas imaginação.

 

Figura 14 – Exposições de quartzitos e conglomerados nas lavras de diamantes em Diamantina, em 1976, e uma visão em detalhe dos conglomerados Sopa Brumadinho em 2022 durante a expedição Pitoresca Estrada Real realizada pelo GMGA.

 

Figura 15 – Detalhes das cavas ou lavras de Diamantina em Guinda, com ênfase aos conglomerados Sopa-Brumadinho, já em 2022, por ocasião da Pitoresca Estrada Real.

 

Concluído os trabalhos de laboratório e munido de todos os dados zarpei no caminho de volta para Belém. Tinha certeza de ter feito o melhor possível e ainda dado os primeiros passos para um projeto maior para a Alemanha, ainda não fazia ideia qual. Primeiro iria me matricular no mestrado e quem sabe trabalhar na UFPA. Esses eram os caminhos que surgiam de imediato, mas ao mesmo tempo notei que havia interesse forte do Eschwege para que eu viesse a integrar o seu quadro e isso era algo que eu via com muito interesse e empolgação, mas os meus professores, Haroldo e Guerreiro, muito amigos de Walter, pelo que entendi, não concordaram. Mais tarde fui contratado como professor colaborador inicialmente por quatro meses, pela UFPA. Fiquei assim em Belém. O meu retorno a Belém foi longo e demorado. Aproveitei para visitar parentes no Rio de Janeiro e para dar uma volta por Minas Gerais, em companhia da Maria das Dores e de meu irmão. Daí retornamos de ônibus a Belém.

Durante o ano de 1976, enquanto lidava com as disciplinas do mestrado, ministrava aulas na graduação (mineralogia/cristalografia e geologia de campo I) e iniciava as pesquisas do Projeto Fosfatos do Nordeste do Pará e Noroeste do Maranhão, financiado pelo CNPQ dentro do programa Trópico Úmido (eu e o Guerreiro o elaboramos e o submetemos ao CNPQ em 1975), escrevi o relatório final (Figura 16) sobre o SOPA-BRUMADINHO, com apoio de Walmeire Alves de Melo.

Em dezembro de 1976 esse relatório foi enviado para o Instituto Eschwege, com o título: DADOS SOBRE A ESTRATIGRAFIA, SEDIMENTOLOGIA E MINERAIS PESADOS DA FORMAÇÃO SOPA-BRUMADINHO NA REGIÃO DE DIAMANTINA, MG. Ele contém 58 páginas de texto, além de 6 anexos: ANEXO – 1 com 15 mapas; ANEXO -2 com figuras ilustrando quartis, grau de seleção, de arredondamento e de esfericidade; ANEXO – 3 com histogramas de análise granulométrica de todas as amostras, 12 figuras; ANEXO – 4 com as 12 figuras de curvas acumulativas; Anexo – 5 com as 12 figuras de curvas acumulativas em escala aritmética; ANEXO – 6: Minerais pesados reconhecidos e suas frequências em percentagem para 7 lavras, portanto 7 figuras. Foi um trabalho gigantesco, que sem a ajuda de Maria das Dores e Walmeire Alves de Melo, não teria sido concretizado a contento. Foi, portanto, o meu primeiro trabalho documentado como geólogo recém-formado pela Universidade Federal do Pará, em Belém, e que me deu mais uma oportunidade de aprendizado e convivência com os laboriosos alemães e ainda me permitiu trilhar novos elos duradouros, produtivos e inesquecíveis com o mundo Alemão.

 

Figura 16 – Excertos do relatório (capa, sumário e desenhos dos minerais pesados identificados.

 

AGRADECIMENTOS

Aproveito para agradecer aos meus primeiros gurus, Pe. Theodor (Feijó-AC; já falecido) por me iniciar a imaginar um mundo diferente, alemão, ao meu professor de geografia, por me incitar a geologia, ao Reitor Aloysio da Costa Chaves, por revolucionar a geologia da UFPA, aos professores Manoel Gabriel Guerreiro (falecido) (Figura 17) e José Haroldo da Silva Sá, meus exemplos de professores na geologia; ao professor José Carlos Raymundo pela cumplicidade e interesse em solucionar problemas logísticos; ao professor Walter Schöll pelo exemplo de vida e profissionalismo e por me colocar a frente com o SOPA-BRUMADINHO. O meu último contato com ele foi através de carta manuscrita de 07.02.88 (Figura 17) quando me enviou as amostras de fosfatos da região de Diamantina, que eu tinha muita vontade de estudá-las; segundo fui informado ele sucumbiu ao tsunami do oceano Índico que atingiu a Indonésia em 26 dezembro de 2004; estendo os meus agradecimentos também ao professor Arno Brichta (Figura 17), que me encorajou nesta empreitada; ao prof. Nilson Oliveira por me abrir caminho para o meu doutorado na Alemanha e à Walmeire que se entregou por completo à nossa vivência inicial na Alemanha.

 

Figura 17 – Cópia da carta escrita por Walter Schöll para Marcondes e imagens em Diamantina, que mostram a presença de Walmeire, Maria das Dores e Marcondes em fevereiro de 1976; M. Gabriel S. Guerreiro e Walter Schöll em 1975; e Arno Brichta, 1976.

 

REFERÊNCIA

Fantinel, Lúcia Maria.2005 O ensino de mapeamento geológico no Centro de Geologia, Diamantina – MG: análise de três décadas de práticas de campo (1970-2000) / Lúcia Maria Fantinel. — Campinas, SP: [s.n.], 2005.