06 – HISTÓRIAS DE CAMPO NA BAIXADA MARANHENSE: OURO, CEMITÉRIOS E ETs

Ano 12 (2025) – Número 2 – Fulgurites, Gastroliths, Aluminium, Crônicas Artigos


HISTÓRIAS DE CAMPO NA BAIXADA MARANHENSE:

OURO, CEMITÉRIOS E ETs

 

10.31419/ISSN.2594-942X.v122025i2a6MENS

 

Maria Ecilene Nunes da Silva
      Universidade Federal do Tocantins, mariaecilene@yahoo.om.br

 

O trabalho de campo é um dos pilares da pesquisa em Geociências, pois é nesse contato direto com o objeto de estudo, que o pesquisador tem a oportunidade de observar fenômenos em ação como a dinâmica fluvial, o recuo de vertentes, a disposição da vegetação no substrato pedológico, e no caso da geologia, as rochas e seus minerais, fósseis, suas feições texturais e estruturais, entre outros.  Essa observação direta, oferece uma compreensão mais ampla e contextualizada dos processos de formação das rochas e das transformações da paisagem, frequentemente caracterizados por sua complexidade e interconexão.  Além do reconhecimento da paisagem, seus elementos e fisiologia, as atividades de campo englobam ainda a coleta de amostras, que podem ser de rochas sedimentares metamórficas, ígneas, minerais, fósseis, solos, etapa estelar para a realização subsequente de análises laboratoriais. Os dados obtidos por meio de análises laboratoriais dessas amostras são essenciais para uma compreensão mais completa dos processos naturais, de formação e transformação da Terra e dos antrópicos que se desenrolam na área estudada.

Outro aspecto bastante interessante do trabalho de campo, especialmente no contexto do Antropoceno (ou não), é a interação que este nos proporciona com as comunidades locais. Essa interação permite aos pesquisadores acessarem saberes tradicionais e compreender as influências e demandas das populações que habitam esses ambientes. Essa troca de conhecimentos além de possivelmente contribuir para enriquecer o desenvolvimento científico e consequentemente tecnológico, do bem-estar da humanidade, pode também promover uma visão mais integrada do meio ambiente. Muitas vezes, essas interações acabam gerando histórias curiosas e diálogos intrigantes, como estes que compartilho a seguir, por conta de minha atividade de campo recém-desenvolvida.

Em novembro de 2024, participei de uma expedição na Baixada Maranhense, uma planície natural alagada no norte do Maranhão. Representando a Universidade Federal do Tocantins (UFT), integrei uma equipe multidisciplinar de pesquisadores de instituições como USP, UFPR, UFPA e a anfitriã UFMA. Nosso objetivo incluía o levantamento topográfico de cotas altimétricas da região em relação ao atual nível do mar, utilizando para isso equipamento de GPS geodésico operando em modo cinemático em tempo real (RTK – Real-Time Kinematic), além do estudo em desenvolvimento dos sítios arqueológicos intrinsecamente relacionados com as regiões alagadas.

O método adotado exigia a divisão do grupo de pesquisadores em duas equipes. Uma delas permanecia junto ao receptor de base, e enquanto isso, a outra equipe se deslocava pelo trajeto empunhando o receptor móvel, em busca de novas posições para marcar os pontos de controle. Ao localizar uma nova posição, a equipe móvel informava a equipe na base, que desmontava o equipamento e se deslocava até o novo ponto de controle, onde montava novamente o receptor de base. Este procedimento foi repetido continuamente ao longo de dois dias, com o grupo em constante movimento (ao estilo de pare e siga) entre os pontos de controle, assegurando a precisão e a cobertura abrangente do levantamento geodésico.

Em um dos pontos onde estacionamos ao lado do receptor base, enquanto a equipe móvel seguia em deslocamento, decidimos entrar em uma pequena e simples lanchonete. Nosso objetivo era tomar um café e, principalmente, solicitar a senha do Wi-Fi, já que não tínhamos acesso à internet móvel e precisávamos nos comunicar com a equipe em movimento. Ao entrar, iniciamos uma conversa com a proprietária do estabelecimento que não tardou em nos indagar:

— E vocês estão fazendo o que por estas bandas?
— Procurando ouro — respondi de pronto.
— Vixe, mas por aqui não tem não.
— Não tem? Tem sim, vocês é que não sabem — devolvi.
— Não tem não senhora… os índios moram aqui pertinho e eles não falaram nada.
— Ah bom! Se eles não falaram nada, então, talvez não tenha mesmo, a não ser que eles estejam escondendo o ouro — concordamos em coro e com risos escapando.

O que chamou atenção nesse diálogo foi a associação direta entre o sucesso ou fracasso de nossa suposta busca e o conhecimento indígena. Para a proprietária, a ausência de relatos sobre ouro por parte do povo Gamela, que habita a região do município de Viana, era suficiente para encerrar a questão. Se os indígenas não mencionaram a existência de ouro, então não há ouro. Simples assim.

Esse pensamento comum, de que os indígenas possuem um saber absoluto sobre os recursos minerais, ignora tanto a complexidade dos processos geológicos quanto o próprio contexto cultural e histórico desses povos. A região onde estávamos, por exemplo, é uma planície composta majoritariamente por sedimentos inconsolidados e geologicamente jovem para conter depósitos auríferos significativos, mas que recobrem rochas antigas e com potencial para ouro. O ouro é geralmente encontrado associado a rochas ígneas e metamórficas, como granitos, quartzitos e xistos, ou em zonas de falhas, fraturas e de cisalhamento que são locais preferenciais para a deposição, pois permitem a circulação de fluidos hidrotermais. E ainda pode ser encontrado em depósitos de aluvião, onde a partir do intemperismo e erosão de rochas auríferas é transportado pelas águas e acumulado em leitos de rios. O ouro nesta região como um todo é conhecido desde o tempo dos jesuítas.

Os Gamela, por sua vez, embora de fato detenham um conhecimento profundo do território, esse saber é orientado por práticas ancestrais de subsistência, cosmovisões e relações socioambientais próprias, e não em geral por objetivos de domínio dos minerais e metais, ao contrário dos povos andinos, do extremo oriente. O fato de “não falarem nada” sobre ouro poderia ser apenas uma ausência de interesse em algo que, historicamente, trouxe uma horda de conflitos para o seio de muitas comunidades indígenas. No espaço territorial de hoje conhecido por Brasil os povos originários não tinham nenhuma familiaridade com os metais, apenas com rochas e algumas minerais para confecção de artefatos e adornos. A atribuição pura e simples da ocorrência de ouro ao saber tradicional indígena, simplifica tanto a ciência quanto a cultura. De um lado, reduz o conhecimento geológico, que depende de prospecção geoquímica e estudos sedimentológicos, a uma anedota. De outro, coloca os povos originários como guardiões oniscientes de segredos do subsolo, obscurecendo a complexidade de suas histórias.  Dito isso, voltemos ao trabalho?

Que lugar maravilhoso para se estacionar – ironizou um dos colegas da equipe base ao perceber que a próxima parada seria bem ao lado de um cemitério. Daqui a pouco aparece alguém a perguntar se estamos tentando conexão com os mortos, completou, apontando para a parafernália montada sob um sol de rachar. Com dois tripés erguidos e equipamentos piscando, de fato, não seria difícil convencer qualquer passante de que estávamos ali numa tentativa séria de abrir um canal direto com o além.

Felizmente, o único curioso que parou foi um sujeito que nos cumprimentou animado, mas ao invés de indagar sobre espíritos, começou a elogiar a beleza do lugar: “bunito aqui né?” Mas é um cemitério, alguém apontou, gesticulando em direção à placa que anunciava sem rodeios: Cemitério do Sossego.

O homem meneou a cabeça, decidido a manter sua opinião. Segundo ele, antes aquilo era só mato, feio que só. “Agora, sim, tá bunito”, decretou. Não acredito que estivesse se referindo às modestas cruzes cravadas nos montículos de terra vermelha. É mais provável que fosse apenas o tipo de comentário automático, daqueles que se diz quando não se quer pensar muito no peso das palavras. Como não encontrou concordância entre os vivos (alguns pesquisadores são péssimos com debates estéticos), o homem deu de ombros, montou em sua motocicleta e partiu rumo a zona urbana de Penalva.

Quanto ao cemitério, não era preciso grande esforço para enxergar uma certa poesia na paisagem. Assentado no alto de um morro, cercado por imponentes babaçuais, o pequeno campo oferecia um retrato que mesclava o sublime e o mórbido em uma harmonia inquietante. As cruzes, enfileiradas como soldados de uma batalha esquecida, enxotava nossa presença. Sob o sol do meio-dia, até as sombras do lugar eram econômicas, completando a atmosfera de desolação contida.  Três estranhos, parados entre a vida e a morte, à espera de um sinal, fosse da equipe móvel ou do além. Se havia uma mensagem a decifrar ali, era a de que a ciência, como a morte, não escolhe lugar nem hora de ocorrência.

Para alívio de todos, especialmente o meu, não permanecemos por muito tempo naquele lugar. Logo seguimos adiante, tomando uma estrada de chão rumo ao lago Formoso, nosso destino pré-definido. No entanto, antes de alcançá-lo, tivemos que fazer mais uma parada, desta vez à beira de uma vicinal, desprovida de qualquer vizinhança.

Novamente, montamos os tripés no meio do nada e do calor, uma vez que, o sol, nosso desafeto fiel, continuava a castigar impiedosamente. À nossa volta, uma infinita planície, aguardava serena e quase silenciosa, pelo abraço líquido das chuvas sazonais, que a transformarão em um imenso espelho d’água, dissolvendo os contornos da terra em um só horizonte aquático. Passantes de moto ou bicicleta iam e vinham lançando sobre nós olhares curiosos, quase incrédulos, predispostos a julgar nossa (in)sanidade. Então, o que vamos dizer agora? Alguém quebrou o silêncio. A resposta veio, rápida e certeira: é melhor dizermos que estamos caçando ETs. Porque, se insistirmos na história do ouro, vamos acabar nos tornando a piada oficial da região.

E não é que fazia sentido? Caçar ETs tem um quê de glamour, algo futurista e misterioso, bem mais interessante do que a realidade prosaica. Estamos rastreando sinais alienígenas, sim senhor! Ou, quem sabe: é aqui que eles vão descer, já confirmamos com os americanos! Ou ainda: estamos procurando vida inteligente amigo, em Marte ou na Terra mesmo, qualquer um serve. Uma pitada de absurdo e pronto, estaríamos virando o assunto em algum bar nas redondezas.

Alguns minutos depois, apareceu um senhor montado em uma moto, que assim como ele próprio, parecia ter resistido a todos os ataques intempéricos possíveis; ele foi desacelerando enquanto se aproximava, com um sorriso curioso. O carro quebrou?  Perguntou, pronto para oferecer sua solidariedade rural e talvez uma chave de fenda improvisada. Negamos. Ele então, de imediato lançou a pergunta que não pôde se calar: e o que vocês estão fazendo por aqui? Nesse momento, talvez por cansaço ou por simples pragmatismo, a resposta foi mais curta e irrefutável: paramos aqui, porque foi onde o GPS mandou parar – respondi.

O homem piscou os olhos, retirou o chapéu e coçou a barba… Por um momento, parecia calcular se aquilo era uma resposta genuína ou algum gracejo. Mas então sorriu novamente e balançando a cabeça, disparou: “tá certo. Se ele mandou, tem que obedecer, né?”

 

Figura 1Foto da Baixada Maranhense. (Fonte: Jailson Mendes. Disponível em: https://jailsonmendes.com.br/wp-content/uploads/2013/12/campos-da-baixada1.jpg).

 

Figura 2Imagem ilustrativa: pesquisadores e   passante curioso, discutem acerca da beleza cênica de um pequeno cemitério cercado por palmeiras de babaçus. (Ilustração da autora).

 

Figura 3Composição gráfica inspirada em fatos reais e imaginários: nos campos alagáveis da Baixada Maranhense, pesquisadores e um transeunte local conversam sobre o uso do GPS, enquanto a ideia de um disco voador com Ets., paira como uma possibilidade intrigante e surreal. (Ilustração da autora).