Ano 11 (2024) - Número 2 - Crônicas Artigos
10.31419/ISSN.2594-942X.v112024i2a5MENS
Maria Ecilene Nunes da Silva
Universidade Federal do Tocantins
Visitei na semana passada uma pequena exposição no hall principal do shopping center da minha cidade. Entre estandes de roupas da chamada moda indiana, laticínios, doces, tapetes e de outras quinquilharias, um deles me atraiu feito o imã da magnetita, não obstante, as minhas baixas reservas de ferritina. Havia amostras de quartzo rosa, verde e hialino, ametistas, piritas, turmalinas negras, entre outros. Um espetáculo de cores e brilhos diversos.
Cumprimentei a vendedora e logo comecei a manuseá-los. A senhora gosta de pedras? Ela perguntou. Sim, gosto bastante, respondi observando a perfeição dos planos de clivagem salientes do mineral. Essa é o cristal de calcita (Figura 1), muito boa para dissipar as energias negativas e melhorar a capacidade mental. Suas vibrações proporcionam tranquilidade reduzindo a ansiedade e a depressão, explanou mansa e pausadamente, como que exibindo a ação do mineral sobre si própria. Que incrível! Respondi, dessa vez me voltando os olhos para a moça. Eu sou cristaloterapeuta há mais de 10 anos e ajudo pessoas a se reconectarem consigo mesmas, através da energia dos cristais, justificou-se. Eu assenti com a cabeça e retornei às minhas análises.
Olhe essa calcita laranja! (Figura 1) Muito poderosa para trazer alegria, eliminar bloqueios emocionais, medos e tristeza. Excelente para quem sente muita canseira, porque ela traz vitalidade, inclusive sexual, pois está ligada aos chacras inferiores, completou. Que maravilha! É tudo que estou precisando, respondi com um discreto esboço de sorriso, enquanto buscava na memória recente a lembrança de uma consulta médica pela qual paguei uma pequena fortuna. O médico depois de folhear meus exames bioquímicos por ele mesmo solicitados, fitou-me os olhos e afirmou categórico: seus chacras estão desalinhados senhora, especialmente o sacral. Achei um tanto estranho, mas ele de fato era médico; eu sei porque consultei posteriormente o seu número de registro junto ao Conselho Regional de Medicina.
Então meus chacras desalinhados são os responsáveis pelo déficit de libido, fadiga crônica e crises recorrentes de ansiedade. É impressionante como um chacra fora do lugar bagunça todo o nosso organismo! E eu colocando toda a culpa na menopausa e no sedentarismo. Obviamente ignorei o receituário que prescrevia o uso de fórmulas homeopáticas e outras baboseiras; já me bastava o dinheiro jogado fora com a consulta.
Quanto custa a calcita? Perguntei segurando as amostras que deveriam medir aproximadamente uns 5 cm cada uma. 40 reais a laranja e 20 a branca, respondeu. Vou levar duas brancas e uma laranja. E me dê 3 dessas aqui também por favor, solicitei apontando para um pequeno box repleto de exemplares de cianita (Figura 1). Realizei o pagamento, agradeci e fui embora, mas não sem antes ouvir sobre os magníficos poderes da cianita. De tudo que ouvi, retive apenas algo sobre o sistema imunológico e favorecimento da perda de peso. Que inferno! Agora preciso também marcar uma consulta com uma nutricionista funcional, integrativa ou sei lá o que…só para dar uma forcinha ao mineral.
Agora sim! Minhas caixas da coleção da escala de Mohs estão novamente completas. Algumas estavam já algum tempo com os espaços de número 3 e 10 vazios desde que os respectivos ocupantes se escafederam misteriosamente. A impostora cianita talvez fora confundida com o pretenso e improvável ocupante: o diamante, ou ainda, quem sabe para fins terapêuticos assim como a calcita.
Poucos dias depois eu e a calcita voltamos a nos encontrar. Passei em frente a uma loja de materiais de construção e me deparei com um grande cartaz colado acima de uma “pirâmide” de latas de tinta expostas na vitrine. Calcita Alaranjada era o nome da cor em destaque. Meus olhos brilharam. Ah! Mas não vou comprar. Faz nem um ano que eu pintei as paredes lá de casa, pensei. Mas essa cor é muito linda! Edição limitada, pigmento 100% mineral!!! E sem falar que é lançamento de uma das melhores marcas de tintas disponíveis no mercado. Além disso, é melhor não ignorar o cosmos. O universo deve estar conspirando a meu favor, tentando a todo custo promover o realinhamento dos meus chacras, e em especial a calcita. A cor em questão é de um tom hemato-goethítico, meio terracota. Uma tinta nessa tonalidade, acredito que eu poderia reproduzir artesanalmente apenas misturando 2 partes de solos (Figura 2) peneirados (terra fina seca ao ar) com 2 partes de água e 1 de cola branca. Eu costumo ensinar a confecção dessas tintas nas oficinas de solos que ministro vez ou outra em instituições de ensino da minha cidade. Uma vez preparada a tinta, nós a utilizamos em desenhos e pinturas sob papel, madeira e outras superfícies; o que é uma forma bem divertida de ilustrar pictoricamente a diversidade de cores dos solos e abordar sobre os atributos físicos, químicos e mineralógicos que resultam na paleta de cores pedológicas encontradas no ambiente.
Não saberia precisar as receitas tampouco as técnicas utilizadas, mas a verdade é que essas tintas ditas naturais, ecológicas ou geotintas já vêm sendo empregadas há muito tempo, desde a pré-história, como se vê nas artes rupestres por exemplo. Já nos dias atuais se tem notícia de vários projetos, como por exemplo, o pioneiro “Cores da Terra” desenvolvido pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) em parceria com Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), o qual inspirou não só a mim, mas a dezenas de outros professores, profissionais da arte, entre outros pelo Brasil adentro e mundo afora. Esse projeto foi implementado inicialmente nas comunidades rurais, onde através da realização de oficinas, ensinava-se essa técnica simples, criativa e sustentável, tendo como matéria-prima a terra de várias tonalidades e assim, utilizavam-na para pintar as residências das pessoas dessas comunidades.
Mas voltando às tintas: os solos tipicamente tropicais, que dominam em nossa região, em sua maioria, são latossolos vermelho-amarelos ou amarelos ou ainda argissolos, mais restritamente plintossolos e espodossolos, e, portanto, não tem nada de calcita na composição mineralógica. Logo essas tintas artesanais, embora ecologicamente corretas, duráveis e bonitas, não teriam efeito algum sobre os meus chacras tortuosos. Chega de devaneios!
Chamei um vendedor que me atendeu prontamente. Pedi 5 galões de 5 kg cada um, mas quase tive um passamento quando vi a somatória dos valores e acabei reduzindo para 3. Pensando bem, nem ficou tão caro assim, considerando a vasta gama de benefícios garantidos pela cristaloterapeuta sobre a calcita laranja e caso não venha a precisar de psiquiatra, psicóloga, personal trainer, endocrinologista, ainda farei algumas economias. O fato é que essa cor terrosa irá contrastar lindamente com o verde das minhas plantas e combinará também com a mobília pré-existente. E se depois dessa, meus chacras não se alinharem e as energias ruins não se dissolverem o jeito será radicalizar e quem sabe me mudar para alguma casinha no campo, afastada de tudo, edificada sobre terrenos calcários, nos quais o mineral calcita é o carro chefe.