04 – O OURO E OS TOLOS

Ano 11 (2024) - Número 2 - Crônicas Artigos

10.31419/ISSN.2594-942X.v112024i2a4MENS

 

Maria Ecilene Nunes da Silva

Universidade Federal do Tocantins

mariaecilene@yahoo.om.br

 

ABSTRACT

Among the several roles played by gold since the most ancient civilizations until today, the most incoherent is for sealing the matrimony. Whoever had this shiny idea certainly considered only the beauty and value of this mineral. If they had measured the other gold properties, would have chosen another mineral to symbolize the instability, complexity and deepness of marriage.  If the objective was to elevate marriage to gold standard, it would be necessary to reproduce other gold properties such as high resistance, chemical inertness and durability and, in addition, the malleability and ductility of gold, which are so necessary for the relationship to be lasting. The marriage is a kind of alchemy becoming increasingly rare nowadays and the relationships are in a general way only lead and other common metals.

 

As crianças do meu lugar — um minúsculo povoado no interior do estado do Maranhão — eram em demasiado incutidas com o ouro. Não era para menos: em plenos anos 80 o sonho moderno do El Dourado as deixara órfãs, muitas vezes de pais mortos mesmo. Os garimpos atraíam levas e mais levas de homens, e também eram lugar de mulher. Passavam-se meses ou anos até que os garimpeiros retornassem ao seio de suas famílias. Raras vezes se ouvia falar de alguém que trouxera consigo seus bambúrrios. Um tanto mais frequente costumavam ser as notícias de um amigo ou parente que rico ou pobre jamais retornaria ao lar.

Eu fui uma dessas crianças em cujas traquinagens a prospecção se fantasiava. Entre mergulhos sucessivos, emergia nas mãos juntadas fartos apanhados de areia ocre colhida no leito do rio Flores. Ali tudo o que reluzisse era ouro. A dança frenética de bateias imaginárias cobria as águas de alvoroço em barulhentos rodopios, até que o chamado da mãe rasgasse os ares estridente fazendo cessar a garimpagem.

De ouro mesmo, meu pai nunca trouxera para casa uma grama sequer, as vezes chegava quase feito a Serra, só com a roupa do corpo. Corpo este, por vezes castigado pela malária, hepatite e implacável frustração que durava menos que o ciclo das pestilências.  Ele continuava voltando e voltando, assim como os outros; prisioneiros de si mesmos, num loop eterno e umbrátil de obsessão; entorpecidos pelo sonho de riqueza. A sede pelo ouro era infinita, assim como pensavam ser também a fonte dourada da qual se pela sorte beijados fossem, poderiam dela se esbaldar ou ao menos bebericar. Enquanto isso as viúvas do garimpo criavam a renca de filhos que crescia a cada retorno de seus mortos-vivos.

Tu larga de ser teimoso homi, não tá vendo que garimpo não dá futuro? Caça outro meio de vida.  Bota outra roça — Aconselhava incrédula minha mãe diante da inquietação habitual do marido, um forte prenúncio da próxima partida a riscar à porta eminente.

Ainda vou encher tua boca de ouro mulher, o riso mais brilhoso desse lugar vai ser o teu —retrucava meu pai.

Roça, sei… Pra seca matar tudo de novo?  Trabalho perdido, vou mais rodear toco não —rosnava ele enquanto a passos duros se afastava dos ouvidos dela.

Ele de trouxa arrumada, sentado à beira da calçada à espera da condução. Ela na cozinha embalando o frito, o alimento da jornada inteira. Chegada a hora, acalenta cada um dos filhos enfileirados aguardando a vez do adeus: “O papai volta logo viu?  O que tu quer ganhar? Uma boneca do teu tamanho, que tal? ” Ela trai a esquiva de tempos e entrega-lhe um abraço curto, resmunga qualquer coisa e se afasta desviando os olhos úmidos do alcance de todos. Meu pai se junta à confraria de exploradores, a D10 segue seu curso; no fim da estrada, uma nuvem de poeira encobre o último vulto obrigando nossos olhos a se encolherem. Mãe ruma casa adentro arrastando os filhos debulhados em choro passageiro e a espera pelo regresso retoma assento na soleira da porta por longo e indeterminado tempo.

A caça ao tesouro continuou por anos a fio até que não mais.  Um belo dia, não me pergunte como, ele montou um negócio próprio e passou a ganhar a vida com outros elementos e compostos químicos. Meu preferido desde então: hidróxido de magnésio. Graças a essa mudança econômica e a outras inúmeras de naturezas diversas, incluindo-se aí uma força de vontade descomunal — pirraça, eu diria — e comodismo, meus pais puderam enfim conquistar o único ouro do qual desfrutariam.   Ano passado celebraram 50 anos de casamento, as famigeradas bodas de ouro.

A propósito, dentre todos os inúmeros significados atribuídos e funções desempenhadas pelo ouro desde os primórdios da humanidade até os dias atuais, uma das mais enigmáticas é o seu uso no enlace matrimonial.  O casamento é um contrato, uma aliança, onde os nubentes trocam um par entre si. Selar essa aliança com ouro é ao meu entender um contrassenso. Quem estabeleceu esse costume certamente deve ter levado em consideração unicamente a beleza e valor do mineral. Se tivesse se atentado para as suas propriedades físico-químicas teria escolhido para simbolizar a instabilidade, complexidade e profundezas do casamento um outro mineral, que não este. O K-feldspato, por exemplo, poderia ser uma boa escolha, pois a depender da intensidade hidrolítica e lixiviante das intempéries vai se reinventando de esmectitas, caulinitas a gibbsita até atingir uma relativa estabilidade, mas ainda assim controlada pela acidez ambiental.   Se o objetivo foi equiparar o matrimônio à natureza e patamar aurífero, seria necessário que este emulasse outras propriedades do mineral como a alta resistência, inércia química e durabilidade e além disso a maleabilidade e ductilidade do ouro tão necessários aos cônjuges para que a relação seja duradoura e alcance senão os felizes para sempre, quiçá ao menos os sonhados 50 anos.

Eu, e posso falar por mim, certamente não apresento as propriedades mencionadas, já que estou no quarto ou quinto casamento e dessa forma também não hei de celebrar as bodas de ouro.  Resta-me comemorar quem sabe as desbodas. Aliás, alguém precisa instituir oficialmente as desbodas de ouro ou seriam de pirita? Assim teríamos mais celebrações não concordam?

Dizem por aí que o casamento é uma construção permanente, onde dois estranhos se unem com um só propósito, trilhando uma rota única e trabalham de forma sinérgica para encontrar o equilíbrio, evolução e fortalecimento mútuo.  Esse tipo de alquimia, no entanto, se faz cada vez mais rara nos dias atuais, e nessa lógica, devo admitir que sou uma alquimista incompetente e desconheço quem não o seja, uma vez que, me vejo cercada de uma maneira geral por relacionamentos que não passam de chumbo grosso e outros metais comuns.

Figuras – Composição ilustrativa: o ouro e os tolos: A) foto de uma pepita de ouro (acervo pessoal de Marcondes Lima da Costa); B) imagem de pirita gerada por Inteligência Artificial; C) Garimpeiro na extração artesanal de ouro aluvial com uso da bateia (foto da internet disponível em: https://www.brasildefato.com.br); D) par de alianças em ouro simbolizando o enlace matrimonial (acervo pessoal).