01 – AS AVENTURAS DE MARCONDES NO MEIO DO ATLÂNTICO: A LIÇÃO DE HUMILDADE DE UM PROFESSOR NO CORAÇÃO DE SÃO MIGUEL, AÇORES

Ano 12 (2025) – Número 4 Causos

https://doi.org/10.31419/ISSN.2594-942X.v122025i4a1HS

 

 

AS AVENTURAS DE MARCONDES NO MEIO DO ATLÂNTICOA LIÇÃO DE HUMILDADE DE UM PROFESSOR NO CORAÇÃO DE SÃO MIGUEL, AÇORES

Susana Horta

         Azores Gems and Minerals, São Miguel, Açores, Portugal, azoresgemsandminerals@gmail.com

 

A única coisa que Marcondes sabia com certeza, ao descer do avião em Ponta Delgada, em setembro de 2023, era o nome da ilha, São Miguel, Açores. De resto, tudo era um borrão, o sotaque dos presentes, os cheiros húmidos da rua e o número de telefone de alguém querido, talvez no bolso.

Ele tinha deixado para trás o calor do Brasil, a família e a sua história para ter apenas uma coisa, o futuro. O futuro parecia um verde denso e nebuloso, sem um único rosto amigo a recebê-lo.

 

Figura 1 – Marcondes na região da  Lagoa do Fogo, São Miguel Açores, Portugal.

 

O sotaque era o primeiro muro. Ele fala português, claro, mas a cadência fechada e lenta da ilha fazia-o sentir-se um intruso, um estrangeiro que falava a mesma língua, mas não entendia o mundo à sua volta.

O que o levou àquela ilha não era o acaso, mas sim o Atlântico e a sua geologia.

Marcondes, professor, geólogo, geoquímico, mineralogista e cientista, é um apaixonado pela química da terra. A sua vinda foi motivada pelo desejo profundo de estudar as entranhas vulcânicas de São Miguel. As falésias negras e as fumarolas não eram apenas paisagem, mas um laboratório a céu aberto. Ele carregava o peso dos seus títulos, mas a humildade foi a sua arma, sabendo que tinha trocado o estatuto pelo desconhecido, e a solidão da viagem era o preço a pagar.

Figura 2 – Vista do Ilhéu de Vila Franca do Campo (Imagem A);  Miradouro de Santa Iria (Imagem B); Poços de São Vicente Ferreira (Imagem C), São Miguel Açores, Portugal.

 

O primeiro ato que quebrou o gelo da solidão não foi a procura de um balcão de atendimento no aeroporto de Ponta Delgada, mas sim o contacto humano movido pela sua paixão. Marcondes veio ao meu encontro, ao encontro de uma completa desconhecida. Um ser de grande saber que mostrou a garra e a humildade de se ligar a uma estranha.

Naquele primeiro encontro, ele não era o Professor, mas o cientista a partilhar a sua curiosidade pela rocha negra do Atlântico. Foi ali que encontrou a sua primeira ponte para a ilha, descobriu que, no meio do isolamento, a única coisa que importava era o propósito que lhe deu a coragem de cruzar o oceano. Ao escavar o solo negro, não procurava apenas a terra, mas o propósito que lhe deu a ponte para novas descobertas.

A noite já tinha caído, mas o encontro estava longe de terminar. Sentados à mesa para jantar, a luz iluminava a conversa. Foi ali que a verdade mais complexa veio ao de cima, o risco. Marcondes, o cientista que passa a vida a buscar certezas, tinha-se entregado ao maior dos desconhecidos, o encontro humano.

Falámos abertamente sobre o receio que ele tinha até nos conhecer. Ele tinha cruzado um oceano com base na confiança de um amigo e na curiosidade de uma estranha. Naquele jantar, percebi que a sua humildade e a sua garra eram a essência do homem disposto a apostar não só na rocha vulcânica, mas também na fé nas pessoas.

Marcondes ficou hospedado em minha casa. A manhã seguinte trouxe o verdadeiro propósito, o começo da jornada pela ilha, guiada por mim e pelo meu marido. Marcondes não era mais um viajante solitário, era agora um companheiro de aventuras partilhadas, unindo a paixão à ciência, à coragem e à humildade.

Iniciámos a nossa jornada, numa correria literal por vales verdejantes. Em cada pausa, a ciência de Marcondes fluía com a humildade de um estudante, unindo o conhecimento académico à beleza que nos rodeava.

 

Figura 3 –  Miradouro de Santa Iria (Imagem A);  Vista do Rei, Sete Cidades (Imagem B); Cerâmica Vieira(Imagem C); Ermida da Senhora da Paz, em Vila Franca do Campo(Imagem D); Ilhéus dos Mosteiros (Imagem E); Cascata da Ribeira dos Caldeirões, Nordeste (Imagem F); Piscina termal do Parque Terra Furnas Nostra (Imagem G); Paisagem típica da ilha de São Miguel Açores (Imagem H), São Miguel Açores – Portugal.

 

Mas a verdadeira ponte entre o Brasil e a ilha era construída à mesa. Os almoços e jantares eram rituais de descoberta gastronómica. Ao lado de um bom tinto português, partilhávamos as famosas lapas grelhadas e, em modo de vício, o lendário pão de alho. Sentados ali, falávamos de vidas, de sonhos e de como a coragem de Marcondes, ao arriscar tudo, tinha desbloqueado uma amizade improvável.

 

Figura 4 – Petiscando Lapas (Imagem A); Saboreando um tinto (Imagem B); Famoso pão de alho de 45 cm (Imagem C), São Miguel Açores – Portugal.

 

A expedição vulcânica de Marcondes tornou-se uma aventura de equipa. Éramos o “Trio da Rocha”. Marcondes, o mestre das pedras; o meu marido, o taxista de crateras e tradutor logístico; e eu, a aluna sedenta.

Não era mais a solidão de um cientista, mas o ciclone de uma amizade cimentada com pão de alho e um bom tinto. Marcondes veio à procura da fundação da Terra e provou que a fundação mais sólida é a de um propósito partilhado.

Deixou a universidade para encontrar um laboratório a céu aberto e desenterrou uma das  minhas maiores lições: “a humildade e a garra são a única ponte segura para o coração de um estranho”.

 

Figura 5 – Lagoa das Sete Cidades (Imagem A); Chá Gorreana (Imagem B); Vale das Furnas (Imagem C); Lagoa do Fogo (Imagem D); Marcondes e o meu marido em Vila Franca do Campo (Imagem E); Poças dos Mosteiros (Imagem F), São Miguel Açores – Portugal.

 

A melhor dessas aventuras foi o Cozido nas Caldeiras do vale das Furnas. Foi aí, no lava-pés da Poça da D. Silvana, um refúgio termal escondido onde a água quente brota da terra, que o melhor e o pior se encontraram. Marcondes, sem ver o buraco, cambaleou. Por um instante, o “mestre das pedras” quase se tornou parte da paisagem vulcânica! Numa reacção de puro instinto e garra, conseguiu salvar-se. E o mais importante: salvou o telemóvel, o registo irrefutável da sua jornada.

 

Figura 6 –  A molhar os pés (Imagem A); A relaxar (Imagem B); A pisar em falso (Imagem C); Em quase total mergulho no lava-pés da Poça da D. Silvana, Furnas (Imagem D), São Miguel Açores – Portugal.

 

Molhado, com a camisa e os calções irremediavelmente arruinados, surgiu um ato de pura humanidade. Um jovem casal açoriano, sem hesitar, ofereceu-lhe uma T-shirt limpa. Marcondes percebeu que a sua maior recompensa não estava nas pedras, mas na inesperada gentileza dos corações humanos. Enquanto o Cozido cozinhava, o “Trio da Rocha” substituiu a roupa arruinada. Marcondes escolheu uns calções brancos, a cor da paz e do recomeço. Aquele ato simples simbolizava que tinha deixado o caos para trás para abraçar a calma da ilha e a fé nas pessoas.

 

Figura 7  – Casal açoriano que cedeu a T-shirt limpa (Imagem A); O novo visual de Marcondes (Imagem B), São Miguel Açores – Portugal.

 

A noite começou a cair rapidamente, e era a hora solene de desenterrar o cozido. O frio apertava. Marcondes, já com os calções brancos, ainda sentia a humidade do susto anterior. Dei-lhe o meu casaco verde para o aconchegar. Ficava-lhe bem. Mas a curiosidade era mais forte do que o frio. Enquanto o vapor da terra subia, ele colocou-se no beiral de uma fumarola a observar, completamente ‘na lua’, sem se dar conta do vão traiçoeiro que se abria por baixo. Entrámos em pânico. Chamámo-lo, aflitos, para ele sair dali. A ilha era o seu laboratório, e ele o cientista disposto a ignorar o risco de vida para satisfazer a sua paixão.

 

Figura 8 – Panela do cozido (Imagem A); Mais quentinho com o casaco verde (Imagem B); Retirando a panela do cozido da fumarola (Imagem C); Hora de saborear o cozido feito nas fumarolas das caldeiras das Furnas (Imagem D), São Miguel Açores – Portugal.

 

Os quatro dias passaram a correr. Marcondes já era o nosso amigo do coração. A urgência da logística cedeu lugar ao momento mais simples e mais forte de todos: a despedida no aeroporto.

No Aeroporto de Ponta Delgada, o abraço foi longo e apertado. Não era apenas um adeus, mas o selo de uma amizade forjada na geologia, no risco, no pão de alho e no bom tinto.

Marcondes, com a sua mala pesada de esperança, tinha-a substituído pelo peso leve e imensurável de um novo Elo Humano. Ele partia com a certeza de que voltaria, o que de facto aconteceu em 2024, mas com menos peripécias e com o sentimento de regressar a casa, ao conhecido, e não de chegar como um ilustre desconhecido.

 

 Figura 9 – O trio no aeroporto de Ponta Delgada, sempre acompanhado pelo nosso “cãopanheiro”, a despedir-se (Imagem A); Um abraçinho apertadinho antes da partida (Imagem B),  São Miguel Açores – Portugal.

 

Mas o verdadeiro susto final aconteceu na manhã seguinte. Marcondes pernoitou num hotel na cidade do Porto. No dia seguinte, seguia para Belém. O telemóvel tocava e ele não atendia. O coração apertava. Finalmente, atendeu. Foi uma videochamada.

Na tela, o alívio deu lugar ao choque: Marcondes tinha um penso na testa, onde cinco pontos recém-cosidos desenhavam o seu último e mais bizarro susto.

 

Figura 10  – Marcondes a dar-nos um choque, Aeroporto Lisboa – Portugal.

 

 

No escuro, ao tentar desligar o alarme do telemóvel para o despertar, tinha batido com a cabeça. O sangue fê-lo correr para a recepção. Felizmente, o destino interveio. Foi socorrido pela recepcionista do hotel, que por uma coincidência divina era brasileira e, tal como ele, de Belém, Brasil. Ali, encontrou o conforto familiar e a prova final de que a rede de apoio estaria sempre à sua espera em Portugal.

A aventura, no entanto, não parou no hospital. A médica proibiu-o terminantemente de viajar. Mas proibir um cientista movido pela garra era inútil. Com a resiliência que só a paixão confere, Marcondes assinou um termo de responsabilidade, assumindo o risco de efectuar o voo de longa distância. O nosso descanso só chegou quando a mensagem confirmou: “Pousei em Belém. Estou em casa, no Pará.”

No meio do rebuliço do aeroporto de Lisboa, enquanto aguardava o voo transatlântico que o levaria de volta a Belém, Marcondes sentia o peso do cansaço e o latejar suave da ferida na testa. Era o último portal antes de casa, um espaço anónimo de partidas e chegadas. Foi então que uma voz, atravessando a multidão, o chamou com uma familiaridade que parecia deslocada: “Professor Marcondes!”.

Ele virou-se e, por um instante, a confusão deu lugar ao espanto. À sua frente estava uma antiga mestranda, um rosto que ele associara aos corredores da universidade no Brasil, agora ali, a milhares de quilómetros de distância. Ao seu lado, estava um menino de olhos curiosos, o seu filho. O abraço que se seguiu foi uma explosão de surpresa e alegria, um reencontro que o destino parecia ter orquestrado.

 

 

Figura 11 – Antiga mestranda (Imagem A); O  encontro final (Imagem B), Aeroporto Lisboa – Portugal.

 

Ao descobrir que partilhariam o mesmo longo voo para Belém, a solidão da viagem dissolveu-se. A preocupação genuína da sua ex-aluna ao ver o seu curativo e a curiosidade do seu filho, que olhava para o professor como uma figura lendária das histórias da mãe, transformaram aquele portão de embarque num porto seguro. A longa viagem de regresso já não seria uma jornada solitária, mas sim uma travessia partilhada. Aquele encontro inesperado era a prova final de que a sua rede de apoio não precisava de ser construída; ela já existia, espalhada pelo mundo, pronta a manifestar-se nos momentos mais improváveis. Mais um Elo Humano se revelava, mostrando que, para Marcondes, o mundo era, afinal, um lar interligado por afectos.

Ao regressar ao Brasil, Marcondes levou a certeza de que a sua maior Base de Afecto não se limitava ao seu país, mas tinha criado raízes numa ilha no meio do Atlântico. Ele trocara o prestígio pela coragem de arriscar a vulnerabilidade, e nessa troca, descobriu que a ciência e a vida se medem pela nossa capacidade de nos ligarmos aos outros. A lição foi clara: a garra e a humildade são a única bússola que aponta o caminho para o Elo Humano, mesmo que esse propósito estivesse escondido numa ilha, à espera de acolher um cientista distraído.

 

HOMENAGEM AO PROFESSOR MARCONDES L. COSTA

O Professor que Trocou Títulos por Afecto

Ao nosso querido Professor, Mestre, Doutor e, acima de tudo, amigo do coração, Marcondes L. Costa.

Hoje, celebramos a coragem de um homem que é definido não apenas pelos seus diplomas — Mestre, Doutor, Professor, Cientista — mas pela sua profunda humildade e garra. Marcondes L. Costa ensinou-nos que a verdadeira ciência da vida não se encontra nos laboratórios ou nas salas de aula, mas na capacidade de recomeçar do zero.

A sua chegada a São Miguel, Açores, em setembro de 2023, foi o ato de coragem de um homem que trocou a segurança do prestígio pelo desconhecido do Atlântico. Marcondes veio com a certeza da sua paixão pela geologia, motivado pelo desejo profundo de estudar as entranhas vulcânicas da ilha, mas partiu com a certeza de ter criado um Novo Elo Humano.

O seu espírito de aventura é a prova de que a sua maior universidade está no seu coração.

  • Ele trocou a cátedra pela curiosidade, mostrando que a humildade é a única bússola que aponta o caminho para a descoberta.
  • Ele substituiu o conforto pela incerteza, enfrentando a solidão com um sorriso teimoso e a garra de um explorador.
  • A sua paixão por cada rocha e cada fumarola cedeu lugar a algo ainda mais sólido: uma amizade cimentada com pão de alho e um bom tinto.
  • Mesmo em momentos de risco, como o quase “mergulho vulcânico” no Lava-Pés das Furnas, onde o susto foi grande e a perda de um registo digital foi evitada, o Prof. Marcondes encontrou a recompensa na inesperada gentileza dos corações açorianos.

Professor Marcondes L. Costa, a sua lição mais valiosa não foi sobre geoquímica, nem sobre geologia ou mineralogia, mas sobre a vulnerabilidade e o afecto. A sua atitude de arriscar a exposição e ligar-se a estranhos com a mais pura fé na humanidade é a verdadeira medida do seu carácter.

O senhor partiu de São Miguel com a certeza de que a sua maior Base de Afecto não se limita ao Pará. Ela ganhou raízes numa ilha no meio do Atlântico, onde nos ensinou que a garra e a humildade são a única ponte segura para o coração de um estranho.

Voltará sempre, não como um ilustre desconhecido, mas como o nosso amigo do coração.

Com todo o nosso carinho e admiração, à espera do seu próximo regresso a casa, a São Miguel Açores – Portugal.