Ano 12 (2025) – Número 4 Causos

A única coisa que Marcondes sabia com certeza, ao descer do avião em Ponta Delgada, em setembro de 2023, era o nome da ilha, São Miguel, Açores. De resto, tudo era um borrão, o sotaque dos presentes, os cheiros húmidos da rua e o número de telefone de alguém querido, talvez no bolso.
Ele tinha deixado para trás o calor do Brasil, a família e a sua história para ter apenas uma coisa, o futuro. O futuro parecia um verde denso e nebuloso, sem um único rosto amigo a recebê-lo.
Figura 1 – Marcondes na região da Lagoa do Fogo, São Miguel Açores, Portugal.
O sotaque era o primeiro muro. Ele fala português, claro, mas a cadência fechada e lenta da ilha fazia-o sentir-se um intruso, um estrangeiro que falava a mesma língua, mas não entendia o mundo à sua volta.
O que o levou àquela ilha não era o acaso, mas sim o Atlântico e a sua geologia.
Marcondes, professor, geólogo, geoquímico, mineralogista e cientista, é um apaixonado pela química da terra. A sua vinda foi motivada pelo desejo profundo de estudar as entranhas vulcânicas de São Miguel. As falésias negras e as fumarolas não eram apenas paisagem, mas um laboratório a céu aberto. Ele carregava o peso dos seus títulos, mas a humildade foi a sua arma, sabendo que tinha trocado o estatuto pelo desconhecido, e a solidão da viagem era o preço a pagar.
Figura 2 – Vista do Ilhéu de Vila Franca do Campo (Imagem A); Miradouro de Santa Iria (Imagem B); Poços de São Vicente Ferreira (Imagem C), São Miguel Açores, Portugal.
O primeiro ato que quebrou o gelo da solidão não foi a procura de um balcão de atendimento no aeroporto de Ponta Delgada, mas sim o contacto humano movido pela sua paixão. Marcondes veio ao meu encontro, ao encontro de uma completa desconhecida. Um ser de grande saber que mostrou a garra e a humildade de se ligar a uma estranha.
Naquele primeiro encontro, ele não era o Professor, mas o cientista a partilhar a sua curiosidade pela rocha negra do Atlântico. Foi ali que encontrou a sua primeira ponte para a ilha, descobriu que, no meio do isolamento, a única coisa que importava era o propósito que lhe deu a coragem de cruzar o oceano. Ao escavar o solo negro, não procurava apenas a terra, mas o propósito que lhe deu a ponte para novas descobertas.
A noite já tinha caído, mas o encontro estava longe de terminar. Sentados à mesa para jantar, a luz iluminava a conversa. Foi ali que a verdade mais complexa veio ao de cima, o risco. Marcondes, o cientista que passa a vida a buscar certezas, tinha-se entregado ao maior dos desconhecidos, o encontro humano.
Falámos abertamente sobre o receio que ele tinha até nos conhecer. Ele tinha cruzado um oceano com base na confiança de um amigo e na curiosidade de uma estranha. Naquele jantar, percebi que a sua humildade e a sua garra eram a essência do homem disposto a apostar não só na rocha vulcânica, mas também na fé nas pessoas.
Marcondes ficou hospedado em minha casa. A manhã seguinte trouxe o verdadeiro propósito, o começo da jornada pela ilha, guiada por mim e pelo meu marido. Marcondes não era mais um viajante solitário, era agora um companheiro de aventuras partilhadas, unindo a paixão à ciência, à coragem e à humildade.
Iniciámos a nossa jornada, numa correria literal por vales verdejantes. Em cada pausa, a ciência de Marcondes fluía com a humildade de um estudante, unindo o conhecimento académico à beleza que nos rodeava.
Figura 3 – Miradouro de Santa Iria (Imagem A); Vista do Rei, Sete Cidades (Imagem B); Cerâmica Vieira(Imagem C); Ermida da Senhora da Paz, em Vila Franca do Campo(Imagem D); Ilhéus dos Mosteiros (Imagem E); Cascata da Ribeira dos Caldeirões, Nordeste (Imagem F); Piscina termal do Parque Terra Furnas Nostra (Imagem G); Paisagem típica da ilha de São Miguel Açores (Imagem H), São Miguel Açores – Portugal.
Mas a verdadeira ponte entre o Brasil e a ilha era construída à mesa. Os almoços e jantares eram rituais de descoberta gastronómica. Ao lado de um bom tinto português, partilhávamos as famosas lapas grelhadas e, em modo de vício, o lendário pão de alho. Sentados ali, falávamos de vidas, de sonhos e de como a coragem de Marcondes, ao arriscar tudo, tinha desbloqueado uma amizade improvável.
Figura 4 – Petiscando Lapas (Imagem A); Saboreando um tinto (Imagem B); Famoso pão de alho de 45 cm (Imagem C), São Miguel Açores – Portugal.
A expedição vulcânica de Marcondes tornou-se uma aventura de equipa. Éramos o “Trio da Rocha”. Marcondes, o mestre das pedras; o meu marido, o taxista de crateras e tradutor logístico; e eu, a aluna sedenta.
Não era mais a solidão de um cientista, mas o ciclone de uma amizade cimentada com pão de alho e um bom tinto. Marcondes veio à procura da fundação da Terra e provou que a fundação mais sólida é a de um propósito partilhado.
Deixou a universidade para encontrar um laboratório a céu aberto e desenterrou uma das minhas maiores lições: “a humildade e a garra são a única ponte segura para o coração de um estranho”.
Figura 5 – Lagoa das Sete Cidades (Imagem A); Chá Gorreana (Imagem B); Vale das Furnas (Imagem C); Lagoa do Fogo (Imagem D); Marcondes e o meu marido em Vila Franca do Campo (Imagem E); Poças dos Mosteiros (Imagem F), São Miguel Açores – Portugal.
A melhor dessas aventuras foi o Cozido nas Caldeiras do vale das Furnas. Foi aí, no lava-pés da Poça da D. Silvana, um refúgio termal escondido onde a água quente brota da terra, que o melhor e o pior se encontraram. Marcondes, sem ver o buraco, cambaleou. Por um instante, o “mestre das pedras” quase se tornou parte da paisagem vulcânica! Numa reacção de puro instinto e garra, conseguiu salvar-se. E o mais importante: salvou o telemóvel, o registo irrefutável da sua jornada.
Figura 6 – A molhar os pés (Imagem A); A relaxar (Imagem B); A pisar em falso (Imagem C); Em quase total mergulho no lava-pés da Poça da D. Silvana, Furnas (Imagem D), São Miguel Açores – Portugal.
Molhado, com a camisa e os calções irremediavelmente arruinados, surgiu um ato de pura humanidade. Um jovem casal açoriano, sem hesitar, ofereceu-lhe uma T-shirt limpa. Marcondes percebeu que a sua maior recompensa não estava nas pedras, mas na inesperada gentileza dos corações humanos. Enquanto o Cozido cozinhava, o “Trio da Rocha” substituiu a roupa arruinada. Marcondes escolheu uns calções brancos, a cor da paz e do recomeço. Aquele ato simples simbolizava que tinha deixado o caos para trás para abraçar a calma da ilha e a fé nas pessoas.
Figura 7 – Casal açoriano que cedeu a T-shirt limpa (Imagem A); O novo visual de Marcondes (Imagem B), São Miguel Açores – Portugal.
A noite começou a cair rapidamente, e era a hora solene de desenterrar o cozido. O frio apertava. Marcondes, já com os calções brancos, ainda sentia a humidade do susto anterior. Dei-lhe o meu casaco verde para o aconchegar. Ficava-lhe bem. Mas a curiosidade era mais forte do que o frio. Enquanto o vapor da terra subia, ele colocou-se no beiral de uma fumarola a observar, completamente ‘na lua’, sem se dar conta do vão traiçoeiro que se abria por baixo. Entrámos em pânico. Chamámo-lo, aflitos, para ele sair dali. A ilha era o seu laboratório, e ele o cientista disposto a ignorar o risco de vida para satisfazer a sua paixão.
Figura 8 – Panela do cozido (Imagem A); Mais quentinho com o casaco verde (Imagem B); Retirando a panela do cozido da fumarola (Imagem C); Hora de saborear o cozido feito nas fumarolas das caldeiras das Furnas (Imagem D), São Miguel Açores – Portugal.
Os quatro dias passaram a correr. Marcondes já era o nosso amigo do coração. A urgência da logística cedeu lugar ao momento mais simples e mais forte de todos: a despedida no aeroporto.
No Aeroporto de Ponta Delgada, o abraço foi longo e apertado. Não era apenas um adeus, mas o selo de uma amizade forjada na geologia, no risco, no pão de alho e no bom tinto.
Marcondes, com a sua mala pesada de esperança, tinha-a substituído pelo peso leve e imensurável de um novo Elo Humano. Ele partia com a certeza de que voltaria, o que de facto aconteceu em 2024, mas com menos peripécias e com o sentimento de regressar a casa, ao conhecido, e não de chegar como um ilustre desconhecido.
Figura 9 – O trio no aeroporto de Ponta Delgada, sempre acompanhado pelo nosso “cãopanheiro”, a despedir-se (Imagem A); Um abraçinho apertadinho antes da partida (Imagem B), São Miguel Açores – Portugal.
Mas o verdadeiro susto final aconteceu na manhã seguinte. Marcondes pernoitou num hotel na cidade do Porto. No dia seguinte, seguia para Belém. O telemóvel tocava e ele não atendia. O coração apertava. Finalmente, atendeu. Foi uma videochamada.
Na tela, o alívio deu lugar ao choque: Marcondes tinha um penso na testa, onde cinco pontos recém-cosidos desenhavam o seu último e mais bizarro susto.
Figura 10 – Marcondes a dar-nos um choque, Aeroporto Lisboa – Portugal.
No escuro, ao tentar desligar o alarme do telemóvel para o despertar, tinha batido com a cabeça. O sangue fê-lo correr para a recepção. Felizmente, o destino interveio. Foi socorrido pela recepcionista do hotel, que por uma coincidência divina era brasileira e, tal como ele, de Belém, Brasil. Ali, encontrou o conforto familiar e a prova final de que a rede de apoio estaria sempre à sua espera em Portugal.
A aventura, no entanto, não parou no hospital. A médica proibiu-o terminantemente de viajar. Mas proibir um cientista movido pela garra era inútil. Com a resiliência que só a paixão confere, Marcondes assinou um termo de responsabilidade, assumindo o risco de efectuar o voo de longa distância. O nosso descanso só chegou quando a mensagem confirmou: “Pousei em Belém. Estou em casa, no Pará.”
No meio do rebuliço do aeroporto de Lisboa, enquanto aguardava o voo transatlântico que o levaria de volta a Belém, Marcondes sentia o peso do cansaço e o latejar suave da ferida na testa. Era o último portal antes de casa, um espaço anónimo de partidas e chegadas. Foi então que uma voz, atravessando a multidão, o chamou com uma familiaridade que parecia deslocada: “Professor Marcondes!”.
Ele virou-se e, por um instante, a confusão deu lugar ao espanto. À sua frente estava uma antiga mestranda, um rosto que ele associara aos corredores da universidade no Brasil, agora ali, a milhares de quilómetros de distância. Ao seu lado, estava um menino de olhos curiosos, o seu filho. O abraço que se seguiu foi uma explosão de surpresa e alegria, um reencontro que o destino parecia ter orquestrado.
Figura 11 – Antiga mestranda (Imagem A); O encontro final (Imagem B), Aeroporto Lisboa – Portugal.
Ao descobrir que partilhariam o mesmo longo voo para Belém, a solidão da viagem dissolveu-se. A preocupação genuína da sua ex-aluna ao ver o seu curativo e a curiosidade do seu filho, que olhava para o professor como uma figura lendária das histórias da mãe, transformaram aquele portão de embarque num porto seguro. A longa viagem de regresso já não seria uma jornada solitária, mas sim uma travessia partilhada. Aquele encontro inesperado era a prova final de que a sua rede de apoio não precisava de ser construída; ela já existia, espalhada pelo mundo, pronta a manifestar-se nos momentos mais improváveis. Mais um Elo Humano se revelava, mostrando que, para Marcondes, o mundo era, afinal, um lar interligado por afectos.
Ao regressar ao Brasil, Marcondes levou a certeza de que a sua maior Base de Afecto não se limitava ao seu país, mas tinha criado raízes numa ilha no meio do Atlântico. Ele trocara o prestígio pela coragem de arriscar a vulnerabilidade, e nessa troca, descobriu que a ciência e a vida se medem pela nossa capacidade de nos ligarmos aos outros. A lição foi clara: a garra e a humildade são a única bússola que aponta o caminho para o Elo Humano, mesmo que esse propósito estivesse escondido numa ilha, à espera de acolher um cientista distraído.
HOMENAGEM AO PROFESSOR MARCONDES L. COSTA
O Professor que Trocou Títulos por Afecto
Ao nosso querido Professor, Mestre, Doutor e, acima de tudo, amigo do coração, Marcondes L. Costa.
Hoje, celebramos a coragem de um homem que é definido não apenas pelos seus diplomas — Mestre, Doutor, Professor, Cientista — mas pela sua profunda humildade e garra. Marcondes L. Costa ensinou-nos que a verdadeira ciência da vida não se encontra nos laboratórios ou nas salas de aula, mas na capacidade de recomeçar do zero.
A sua chegada a São Miguel, Açores, em setembro de 2023, foi o ato de coragem de um homem que trocou a segurança do prestígio pelo desconhecido do Atlântico. Marcondes veio com a certeza da sua paixão pela geologia, motivado pelo desejo profundo de estudar as entranhas vulcânicas da ilha, mas partiu com a certeza de ter criado um Novo Elo Humano.
O seu espírito de aventura é a prova de que a sua maior universidade está no seu coração.
Professor Marcondes L. Costa, a sua lição mais valiosa não foi sobre geoquímica, nem sobre geologia ou mineralogia, mas sobre a vulnerabilidade e o afecto. A sua atitude de arriscar a exposição e ligar-se a estranhos com a mais pura fé na humanidade é a verdadeira medida do seu carácter.
O senhor partiu de São Miguel com a certeza de que a sua maior Base de Afecto não se limita ao Pará. Ela ganhou raízes numa ilha no meio do Atlântico, onde nos ensinou que a garra e a humildade são a única ponte segura para o coração de um estranho.
Voltará sempre, não como um ilustre desconhecido, mas como o nosso amigo do coração.
Com todo o nosso carinho e admiração, à espera do seu próximo regresso a casa, a São Miguel Açores – Portugal.